Gênero: uma categoria útil de análise?


Introdução

O artigo está organizado em três partes e terá como objetivo geral retomar o texto de Joan Scott “Gênero uma categoria útil de análise”, apontando a importância e os limites da categoria gênero quando se pensa nos corpos escravizados. Na primeira parte, será problematizada a centralidade da diferença sexual como definidor das masculinidades e das feminilidades. A discussão terá como recorte empírico os Anais do Congresso Nacional, entre maio e setembro de 1871, período em que se discutiu a proposição de lei que viria a se tornar conhecida, após a aprovação, como Lei do Ventre Livre. Na segunda parte, o diálogo com o conceito de gênero será contextualizado na esfera do Estado e a partir do lugar que os corpos das mulheres livres e escravizadas ocupavam na esfera legal. A concepção de que o gênero é uma categoria primária para se analisar as relações de poder não problematiza as condições anteriores e exteriores à posição de poder que o masculino e feminino ocupam nas relações sociais racializadas. O conceito central para analisar a distribuição diferencial de reconhecimento das identidades de gênero será o de necrobiopoder. No terceiro movimento, o foco estará circunscrito à família. Em articulação com a discussão da diferença sexual e das relações de poder se tentará compreender a reiterada negação do reconhecimento da existência de família formada por pessoas escravizadas e os efeitos desse não reconhecimento na contemporaneidade.

A discussão sobre os limites da categoria gênero será um dos movimentos do texto porque o debate sobre produção do sujeito está assentado em uma concepção binária racializada do masculino e do feminino, que se efetiva nos marcos da família. Dos saberes instituídos, a psicanálise se destaca na formulação de teorias que buscam interpretar os processos de formação do sujeito. Como a psicanálise pode nos ajudar (ou não) a compreender a produção de sujeitos em que a principal instituição responsável por esse trabalho, a família, nos termos da triangulação edipiana, estava ausente? Esta será a pergunta-guia da terceira parte do artigo.

Diferença sexual, gênero e poder

Quando eu digo “mulher/homem” desencadeia-se um conjunto de expectativas fundamentadas na naturalização das subjetividades, dos desejos e dos locais sociais que os corpos femininos e masculinos devem ocupar nas estruturas sociais. E nessas expectativas o destino da reprodução humana, a maternidade, ocupa um lugar central. Mas eu posso dizer “mulher” e, no entanto, os atributos definidores para o feminino não serem reconhecidos? O significante universal “mulher” invisibiliza uma pluralidade de posições que corpos dito femininos ocupam na ordem de gênero feminino. Torna-se necessário produzir outras operações linguísticas, acrescentar os termos “mulher negra escravizada”. Ao fazer essa adição, termina-se por alterar o conteúdo mesmo do primeiro termo. As expectativas mudam e levam-nos a perguntar se a categoria gênero isolada de outros marcadores sociais da diferença e da desigualdade social tem algum alcance analítico. Se a análise das relações de gênero é fundamental para entender as relações de poder, talvez seja necessário se pensar que há um momento analítico anterior que se refere às corporalidades que não podem ser reconhecidas como homem e mulher.

Em 1851, na Women’s Rights Convention (em Ohio/Estados Unidos, 1851), religiosos discutiam a impossibilidade de conferir às mulheres os mesmos direitos civis dos homens, pois a natureza frágil, a debilidade intelectual, a origem do pecado oriundo de Eva, não as qualificavam para a vida pública. Sojourner Truth, uma mulher negra, ex-escravizada, intervém nesse momento.

 

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda

para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar

valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam.

Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar

sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum!

E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus

braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem

algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu

poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem –

desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite

também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria

deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a

 minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! 

E não sou uma mulher?¹

 

A resposta às perguntas dela certamente seria “não”. O discurso já anuncia essa resposta e transforma-se em um manifesto de luta por reconhecimento do direito a pertencer ao gênero feminino. Essa reivindicação nos revela duas dimensões contraditórias das normas de gênero: 1) o dimorfismo sexual não era a condição suficiente para definir o gênero. Não bastaria ter estruturas cromos somáticas iguais para ser reconhecida como mulher, tampouco ter o mesmo atributo natural (a maternidade). Ela não era uma mulher. Tornar-se mulher seguiu trajetórias de luta desconhecidas para as mulheres brancas livres. O gênero, portanto, sempre foi da ordem das relações do poder. Mas são marcadores exteriores ao gênero que definem o reconhecimento (ou não) do gênero. A designação sexual não é determinada a partir do lugar que os corpos generificados ocuparão nas estruturas sociais.

Sojourner foi assignada como mulher, mas não era uma mulher. Precisou anunciar esse não reconhecimento e, ao fazê-lo, explicita o caráter político da suposta diferença natural entre os gêneros. Naquela interpelação (“E não sou uma mulher?”), a distribuição diferencial de reconhecimento de humanidade toma o espaço público e revela o car|ter ficcional da categoria “mulher”. Sojourner possuía todos os atributos construídos como “naturais” para definir o gênero feminino, mas tem essa condição negada porque a raça definirá quem pode ou não ser reconhecido como mulher ou homem.

A raça torna-se um tipo de checkpoint, um controle, que irá definir quem poderá entrar na categoria gênero. As disputas ontológicas estavam referenciadas em uma marca anterior ao gênero. No contexto da escravidão, essa barreira operava com o respaldo legal e se reproduzia em todas as esferas sociais. As barreiras legais foram removidas, no entanto, conforme tentarei apontar na discussão sobre a representação da família, sendo que há linhas de continuidade entre a negação da humanidade das pessoas negras escravizadas no presente.

¹ TRUTH, S. E não sou uma mulher? Portal Geledés, 2014. Disponível em: https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/. Acesso em: 01/12/2021.

Para ler o artigo completo, acesse: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/48966

Imagem da capa: Obra “Mãe Preta”, de Lucílio de Albuquerque (1912) / Reprodução. 


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