Europa: Homonacionalismo e racismo


(publicado na Revista Cult – 22/09/2023 )

Cena 1: O monstro fala

Em novembro de 2019, o filósofo Paul B. Preciado ocupou a tribuna da Escola da Causa Freudiana em Paris. Não conseguiu concluir sua conferência, porque os/as psicanalistas presentes negaram-se a escutar a voz de alguém que ousou invadir aquela casa para lhes dizer como o regime da diferença sexual, fundamento que sustenta a psicanálise, produz sofrimento, exclusão e morte. A máquina de triturar gente inventada em meados do século 18 e consolidada no século 19, na Europa, produziu no seu ventre os/as filhos/as malditos/as, aqueles/as que estariam condenados à não vida. Tornar-se sujeito e, posteriormente, ter direito à cidadania passou a ser condicionado ao desempenho dos supostos desígnios do dimorfismo sexual, em que a feminilidade só ganha inteligibilidade quando desempenhada por uma mulher-vagina e a masculinidade por um homem-pênis. Na aparente radicalidade da crítica de Preciado à diferença sexual, no entanto, o fundamento do projeto ontológico eurocentrado foi preservado. Suas críticas foram articuladas a partir do tripé: diferença sexual-patriarcado-colonialismo. Proponho desmembrar essa tríade. Comecemos pelo par diferença sexual-colonialismo.

O regime da diferença sexual funciona por assimetria e hierarquia, os corpos sexuais são distribuídos em pares dicotômicos. De um lado, o homem é identificado pelos atributos da razão/força/atividade. A mulher, pela emoção/fragilidade/passividade. Essas assimetrias encontram na ideologia da complementariedade do sexo, na heterossexualidade, a expressão da sabedoria da natureza agindo e formando o humano. A diferença sexual como determinante das identidades e destinos refere-se à produção dos corpos colonizadores, um tipo de ontologia e epistemologia internas à Europa. No exato momento em que o dimorfismo estava em luta contra o isomorfismo na Europa, a empreitada colonial nas Américas estava em pleno funcionamento. Uma massa imensa de corpos foi abjetada da categoria “humano”. A diferença sexual tornou-se, na modernidade, a senha que permitia o reconhecimento do corpo como humano. Mas essa diferença dizia respeito aos corpos que portam uma condição anterior: serem europeus e brancos.

As mulheres e homens escravizados/as, embora tivessem a mesma aparência de gênero, a mesma morfologia que as pessoas livres, não entraram para o regime da diferença sexual. Nos textos escritos pelos colonizadores sobre as pessoas negras, pode-se notar que a diferença sexual é transfigurada em pura bios, força biológica consumida na esfera produtiva que não qualificava esses corpos a habitarem o mundo dos homens e das mulheres. O dimorfismo nunca foi universal. As diferenças sexuais entre as pessoas escravizadas não eram reconhecidas como atributos qualificadores que lhes autorizariam a ocupar posições nas esferas públicas (homens) ou privadas (mulheres), mas um mecanismo para a obtenção de lucros. O leite da mulher escravizada era um insumo que poderia render consideráveis lucros para as senhoras ou/e os senhores escravocratas. Se fizermos duas colunas e na primeira arrolarmos as ditas características naturais das mulheres brancas e, na segunda, das mulheres negras, emergirão outras configurações. As negras eram reconhecidas pela força, perversão sexual, energia, irracionalidade e corpos resistentes à dor. E as brancas pela passividade, emotividade, fragilidade, recato, honradez. Parece-me, então, que é a essa mulher branca que Preciado está se referindo e com a qual teve que lutar para se desidentificar. Mas ao universalizar a diferença sexual, ele produz o apagamento das existências negras e dos povos originários das Américas.

As negras habitam o mundo do não humano, do abjeto. As brancas, o da diferença sexual, do destino traçado para formação das famílias do Estado-nação, e nas colônias eram senhoras escravocratas. Ao referir-se ao “colonial” sem apontar o protagonismo que as mulheres e os homens europeus tiveram no genocídio de milhões de pessoas, o filósofo espanhol termina por operar a crítica com o mesmo fundamento que supõe negar: o universalismo. Torna-se um legítimo herdeiro do pensamento eurocentrado. Enquanto as mulheres e homens europeus e brancos nasciam com gênero, uma “dádiva” da diferença sexual, as pessoas negras escravizadas tiveram que transformar o gênero em uma agenda de luta e, nas entranhas do discurso da diferença sexual, tiveram que performatizar a pergunta “e eu não sou uma mulher?”. Sojourner Truth, o monstro negro, também ousou confrontar senhores e senhoras guardiãs da diferença sexual. Certamente, a resposta que eles deram à pergunta da escritora foi: “você não é mulher. Você é uma negra”.

Se ela tinha todos os atributos que qualificam seu corpo para entrar no mundo feminino, por que não era reconhecida como mulher? Por que ela estava fora da diferença sexual? Para ter direito a entrar na diferença sexual, uma pré-condição deveria ser observada: ser branca. Ou seja, há um nível condicionante e anterior à entrada na diferença sexual. Os efeitos dessas concepções ontológicas com fundamento na raça seguem com seus efeitos na contemporaneidade, basta observar as diferenças consideráveis entre as agendas de luta dos feminismos negros e dos feministas ocidentais. As feministas negras lutam para, por exemplo, ter direito à mesma quantidade de anestesia que as brancas quando precisam realizar um procedimento cirúrgico. Pesquisas apontam que a representação dos corpos negros como mais resistentes à dor segue presente. Sobre os ativismos trans, que precisam enfrentar o império da diferença sexual: não é possível uma análise no topo de uma roda gigante sem que se perceba que as pessoas trans oriundas de países ex-colonizados, na Europa, devem lidar diariamente com esse passado, porque os colonizadores de ontem têm bons e fiéis herdeiros.

O filósofo afirma: “a invenção da estética anatômica da diferença sexual serviu para sustentar a ontologia política do patriarcado ao estabelecer diferenças ‘naturais’ entre homens e mulheres, numa época em que a universalização de um único corpo humano vivo poderia ter legitimado o acesso das mulheres ao aparelho de governo e à vida política”. A retórica da diferença sexual nunca foi universal. Se o corpo universalizado não incluía as pessoas negras e indígenas, me pergunto como o “patriarcado” operava no mundo dessas populações. Eu também me pergunto o que Preciado entende por “patriarcado”. Parte considerável das teorias feministas aciona os recursos da psicanálise para oferecer uma interpretação da posição de opressão que as mulheres ocupam na ordem de gênero.

Volto-me para a experiência colonial e escravocrata. Seria possível afirmar que as mulheres negras escravizadas compartilhavam com as mulheres brancas o mesmo espaço de opressão imposto pelo patriarcado? Caso a resposta seja afirmativa, como parece sugerir Preciado, parte-se do pressuposto que a condição de gênero seria um elo comum, resultando em campos experienciais compartilhados por todas as mulheres e homens. Mas como se produziria esse campo interseccionado de experiências? A diferença sexual é um atributo qualificador para adentrar a categoria de humanidade, e as mulheres e os homens negros/as não faziam parte dessa ontologia. Assim, só nos resta responder com o retorno da diferença sexual, não mais como um dispositivo de poder, mas como um dado biológico inescapável. Afinal, mesmo sendo mulheres escravizadas, elas continuavam a ser mulheres. Ao produzir uma análise universalizante, Preciado acaba por reinstaurar o primado da diferença sexual como um dado. Há apagamentos no argumento do filósofo próprios do pensamento colonial que precisam ser lembrados. As pessoas escravizadas não tinham sobrenome, não podiam formar famílias, tanto senhores quanto senhoras brancas tinham poder de vida e morte sobre as existências negras, e estas, mesmo quando conseguiam a carta de alforria, não passavam a ter o mesmo estatuto político e ontológico das pessoas brancas.

Conta um viajante europeu que, ao visitar o Rio de Janeiro do século 19, notou que a pergunta mais embaraçosa que se podia fazer a uma mulher escravizada era o nome do pai de seu filho porque, como matriz reprodutora, ela não podia decidir sobre sua vida sexual. É possível que o mesmo regime de poder, o patriarcado, seja acionado para interpretar contextos sociais antagônicos? Será que essa ordem político-simbólica paira sobre as existências totalmente deslocada das relações sociais objetivas, tornando-se a-histórica? Será que Preciado, o filho rebelde, que retorna como filósofo à casa paterna, não fez, com seu discurso, um elogio ao nome-do-pai?

Essas ponderações não podem ser acionadas como um recurso para desconsiderar os sofrimentos e também os efeitos do regime da diferença sexual. Tampouco como desqualificador das lutas internas que os dissidentes europeus travam. Contudo, não se pode seguir considerando que as monstruosidades são as mesmas em todas as partes do globo.

Cena 2: O monstro grita

18 de janeiro de 2023. O ambiente controlado do teatro São Luiz, em Lisboa, é interrompido por Keyla Brasil, uma travesti brasileira. Ela atravessou o corredor como uma faísca elétrica. Dirigiu-se ao palco e interrompeu o espetáculo. Gritou seu manifesto contra o transfake. Keyla é uma artista que precisou inserir-se no mercado sexual para sobreviver. É como se a Agrado tivesse fugido da peça para nos contar a guerra diária para sobreviver. Mas Keyla não tem um atributo de Agrado, personagem da peça “Tudo sobre a minha mãe”, que estava sendo encenada. Ela não é europeia, mas uma ex-colonizada que tenta sobreviver na capital de um país que segue exibindo com orgulho os nomes de genocidas dos parentes políticos de Keyla. Eles estão em todas as partes: em nomes de ruas, escolas, avenidas, em centenas de monumentos.

Da mesma forma que a audiência não escutou o filósofo, Keyla teve que gritar mais alto para sobressair às vaias que emergiam de pontos difusos da plateia. O monstro gritou.

Após esse ato político, iniciaram as ameaças de morte à Keyla. Como ela ousou dizer que há transfobia em Portugal? A Câmara de Vereadores de Lisboa atuou rapidamente para pôr as coisas no lugar certo: aprovou uma moção de apoio aos artistas e negou que haja transfobia em Portugal.

E se Keyla demandasse o direito de ter seu trabalho como puta reconhecido, do qual retira seu sustento? Em Portugal, há associações de mulheres trabalhadores do sexo que estão em luta por esse direito e têm que enfrentar as feministas abolicionistas que reiteram que o trabalho sexual é uma expressão máxima do domínio patriarcal sobre os corpos das mulheres. Em uma conversa pública com feministas abolicionistas portuguesas, escutei que “não admitiremos a legalização desse trabalho. Que voltem para seus países, se querem esse tipo de proteção”. Ou seja, negam o direito à aposentadora e outros resguardos legais que as trabalhadoras conquistaram, acionando o espectro do patriarcado. Que importância tem se uma travesti brasileira passa fome?

O documentário No coração do Bois, de Claus Drexel, conta a história de travestis trabalhadores sexuais no Bois de Boulogne, em Paris. A grande maioria é oriunda de países ex-colonizados pela Europa. Uma das entrevistadas lembra que elas sempre tiveram de lutar contra os governos, as forças da repressão, mas nada se compara ao ódio que as feministas têm de suas existências. Foram elas que, para combater o patriarcado, defenderam uma lei que passou a criminalizar os clientes. A luta não é contra o patriarcado, mas contra os corpos racializados que instauram e reatualizam a luta colonial não nos espaços além-mar, mas dentro da Europa.

Se eu apontei, na primeira cena, a raça como elemento fundamental que antecede ao batismo humano, a diferença sexual, a raça retorna aqui disfarçada com o nome asséptico de “imigrantes”, e as fronteiras do Estado e da nacionalidade que aparecem com recorrência no discurso de Preciado saem da esfera da metáfora e transformam-se em política de produção continuada da morte dos monstros, os ex-colonizados, seja nos centros de detenção, nos campos de refugiados ou em Lampedusa (uma ilha que, de fato, é um misto de base militar e campo de guerra contra os ex-colonizados). Para fazer os resgates no Mediterrâneo, os representantes do Estado italiano se vestem como se estivessem em uma guerra bacteriológica. Seus corpos são completamente cobertos por um uniforme branco, o que produz um forte contraste com os corpos negros que aportam semi-desnudos, exaustos, com dificuldade de se manter em pé para pisarem pela primeira no solo europeu.

No cais em Lampedusa, não há nenhum banheiro, comida nem quaisquer sinais de boas-vindas que a Europa demonstrou largamente ao receber os ucranianos. Depois, são transferidos para um “lugar de acolhimento”. Dormem ao relento e compartilham o solo duro com o lixo que se avoluma. Eu nunca tive uma imagem que se aproxima tão intensamente das descrições das senzalas, espaços destinados às pessoas escravizadas inventados pelos colonizadores portuguesEs. Eu olhava para aqueles corpos e me perguntava quem seriam os dissidentes sexuais e de gênero, quem era o monstro? Quem seria travesti ou gay em meio àquelas pessoas? E isso importa? Eram negros, eram africanos, uma massa de gente despossuída de documentos, de palavras, de importância, de história. A cada momento, a Europa reinstaura a produção dos monstros, dos selvagens, dos incivilizados.

Voltei a presenciar a guerra unilateral da Europa contra os ex-colonizados quando visitei um campo de refugiados em Lesbos. Meu trabalho ali era simples: ajudar na preparação da comida feita por uma ONG. A rica Europa não tem recursos suficientes para dar a quantidade de calorias necessárias para assegurar a sobrevivência de pessoas presas no campo. A jaula não é uma metáfora, mas um texto explícito: monstro bom é monstro morto.

As técnicas de produção da morte para evitar que ex-colonizados, monstros que assombram a consciência europeia, desembarquem são inúmeras: intercepção de barcos, demora em fazer os resgates, parcerias criminosas com as guardas costeiras da Líbia e da Tunísia, principais locais de saída dos ex-colonizados africanos. A quantidade de pessoas que perderam a vida no Mediterrâneo tentando entrar na Europa Fortaleza é imprecisa, mas é um erro de análise e de sensibilidade definir esse mar como uma cova. O Mar Mediterrâneo é um campo de extermínio. O novo campo de extermínio inventado pela Europa.

Participei de várias atividades no Mês do Orgulho na Europa. Caminhei junto com os monstros nativos. Busquei, obsessivamente, encontrar uma palavra de solidariedade aos deixados para morrer nos campos de refugiados e nos inúmeros centros de detenção de imigrantes na Europa. Tentei encontrar um “pare a deportação!”. A minha procura foi inútil. Com uma única exceção: o coletivo Panteras Rosa, de Lisboa, que tem um considerável arco de alianças e de atuação que não os restringem à questão LGBTTIQ+ da Europa. Eu já tinha feito essa mesma busca durante as atividades do 08 de março. Fui para as ruas com as mulheres francesas, em Paris. Em um dia chuvoso, tentei encontrar algum coletivo de mulheres que pautasse o racismo constitutivo do Estado francês, a perseguição desvairada às mulheres muçulmanas e algum tipo de denúncia contra a política de promoção de morte dos ex-colonizados. Outra vez, minha procura foi inútil. As palavras de ordem giravam basicamente em torno do patriarcado. Afinal, eu me perguntava, o que eu tenho em comum com essas feministas?

Parece que, ao contrário do meu desejo, os monstros nativos têm preferido tornar-se parte da política continuada de eliminação da presença dos ex-colonizados. Na eleição da Espanha, que aconteceu em maio desse ano, o bairro Chueca, conhecido por ser um espaço acolhedor para os familiares políticos de Preciado, os monstros, votou majoritariamente nos candidatos da extrema direita (VOX) e da direita (PP). Essa tem sido uma tendência em toda Europa. Podemos inferir que há uma hierarquia impulsionadora do voto. Pode-se lutar contra o império do sistema binário, contra a diferença sexual, mas manter os dois pés fincados na defesa da proteção das fronteiras nacionais, contra a invasão dos selvagens. Transiciona-se de gênero, nega-se a heteronormatividade, mas defende-se a pureza da identidade nacional, porque essa é anterior e englobante.

Parte considerável dos esforços das pessoas trans provenientes de ex-colônias está em convencer os coletivos nativos da Europa a incorporar as especificidades das pessoas trans imigrantes, os sem-papéis, nas suas agendas. Ou seja, há um momento anterior, um passo atrás: fazer com que suas existências sejam notadas dentro dos coletivos europeus e, assim, transformar o “refugo da terra”, expressão de Hannah Arendt para os refugiados, em sujeitos com voz audível internamente.

Preciado diz que “desde 16 de novembro de 2016, sou portador de passaporte com nome e sexo masculino, portanto não há mais obstáculos administrativos à minha liberdade de movimento ou à minha capacidade de falar”. O monstro foi domesticado e normalizado pelo Estado? Essa liberdade, Keyla certamente nunca conhecerá. A pergunta conhecida sempre retorna: “de onde você é?”. Não existe passibilidade para os/as ex-colonizados/as, mesmo que ele/a tenha nascido em Lisboa ou em Paris, mesmo que sejam alemães de terceira geração, a pergunta virá. A Europa desenvolveu um tipo de tecnologia para detectar os “invasores” muito antes dos dispositivos de reconhecimento facial. A pergunta trás nas suas entranhas a exclamação: “Não queremos você aqui!”.

Cena 3: O monstro se cala

Enquanto eu lia o texto de Preciado, eu vi uma bandeira gigante tremulando nos céus de Bruxelas. Essa é uma daquelas coincidências difíceis de explicar. A nova versão da bandeira LGBTTIQ+ estava ao lado de todas as bandeiras dos Estados europeus, na entrada do parlamento da União Europeia. Enquanto lia, me perguntava: que tipo de monstruosidade é essa que foi assumida como elemento definidor da identidade dos Estados europeus? O que se tem observado ao longo das décadas é o desenvolvimento de linhas de financiamento de pesquisa e atividades que tenham como eixo a questão dos gêneros e sexualidades dissidentes. Sabemos, contudo, que entre a intenção política oficial (que obedece a disputas narrativas que visam reproduzir a Europa como ápice da civilização) e a vida cotidiana das pessoas LGBTTIQ+ há uma distância considerável. As violências contra as pessoas LGBTTIQ+ no mercado de trabalho, nas escolas, nas famílias, não estão superadas. Esse reconhecimento, no entanto, não responde à questão: por que os representantes dos Estados da Europa Fortaleza repetem orgulhosos que não existe transfobia, a exemplo do que aconteceu com Keyla?

A resposta não está exclusivamente nas relações internas na Europa. Está acontecendo com a agenda de luta dos dissidentes sexuais e de gênero, algo muito similar com o que se notou com o feminismo. A invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos e pela OTAN inaugurou uma nova retórica global do poder das grandes potências. Nunca antes a situação das mulheres tinha sido acionada para justificar políticas de ocupação. Esse recurso retórico representou uma nova configuração discursiva que tem como fundamento a instrumentalização das lutas feministas. A mulher transforma-se em uma moeda nas disputas globais impulsionada pelos países dominantes. Com o argumento de salvar as mulheres das garras do Taliban, o que se observou foi uma verdadeira pilhagem dos recursos naturais e humanos do Afeganistão por 20 anos. Qual foi o legado que mundo civilizado deixou para o Afeganistão? Um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo.

Setores dos movimentos LGBTTIQ+ e dos movimentos feministas encontraram nos braços quentes do Estado e das grandes corporações o lugar para definir, circundar e limitar suas ações, sem nenhum tipo de aliança ético-política fora das fronteiras nacionais. Por isso, a ausência das políticas de alianças tanto nas atividades do Orgulho quanto nas manifestações do 08 de março com os/as ex-colonizados/as que habitam ou tentam entrar na Europa Fortaleza. A universalização dos valores vinculados à agenda feminista e dos direitos LGBTTIQ+ como moralmente superiores passa a ter outro alcance e efeitos quando transformados em retórica de poder de Estados. Mas se o Estado passa a ser a encarnação do espírito da época, a defesa da diversidade, por que não apoiar esse Estado?

O conceito de “estruturas de atitudes e referências”, proposto por Edward Said, nos ajuda a compreender a adesão da população europeia ao colonialismo e ao imperialismo. Sem legitimidade interna, o genocídio das populações originárias das Américas e africanas não teriam perdurado por quase 400 anos. Como aponta o intelectual palestino em Cultura e Imperialismo, “tanto o movimento das mulheres quanto o proletariado eram favoráveis ao império (…). Havia, na prática, uma unidade de propósitos nesse campo: o império devia ser mantido, e foi mantido”. A Europa civilizada, para se manter pura, sem o contágio dos bárbaros, necessita e tem o apoio de parte considerável dos monstros das dissidências sexuais e de gênero.

Como é possível teorizar sobre monstruosidade quando os Estados assumiram a normatização das populações LGBTTIQ+ como a coluna vertebral para a produção da diferenciação radical entre os civilizados e os selvagens? Ao par dicotômico racionalidade versus irracionalidade, emerge o man of diversity, o que responde ao chamado dos Estados para, por um lado, garantir que as fronteiras não sejam invadidas pela turba selvagem oriunda de regiões do globo que não respeitam a diversidade e que poderão contaminar a civilização com seus valores, com seus hijabs, com seus cheiros, seus cabelos, suas peles escuras.

Se concordamos com Preciado que “o monstro é aquele que vive em transição”, não seria importante valorizar política e analiticamente a performance dos Estados europeus que expõem com orgulho o Orgulho LGBTTIQ+? Para onde estão indo os monstros da diferença sexual? Será que o trânsito já não foi concluído e se fez a opção pela acolhida dos Estados? O monstro se calou? As feministas abolicionistas já fizeram suas escolhas. Tornaram-se proxenetas do Estado, vivem de angariar recursos dos Estados europeus pela instrumentalização reiterada dos corpos das ex-colonizadas. São as carnes das ex-colonizadas que garantem suas sobrevivências. Parte do movimento LGBTTIQ+ também entendeu que antes de ser dissidente são europeus. O passaporte lhes confere um tipo de posição ontológica que, mesmo habitando internamento um lugar de dor imposto pela diferença sexual, a origem nacional e continental é um tipo de patrimônio, inegociável. Afinal, quem é o “nós”, o sujeito oprimido universal que aparece reiteradamente em Preciado? Na “estrutura de atitude e referência” de tempos neocoloniais, não é possível tentar produzir um sujeito global dissidente, a partir de políticas de alianças ficcionais. Se “ninguém pode te dar o que não tem e nunca conheceu”, para recuperar Preciado, parece um esforço inútil convocar os/as herdeiros/as dos/as colonizadores/as a escutar a voz de Keyla.

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e Pesquisadora Visitante do CES/Universidade de Coimbra.


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