Oito laranjas


Oito laranjas

(Para as crianças do Campo de Refugiados Kara Tepe, em Lesbos (Grécia))

A criança me entrega uma ficha. Letras e números estão quase ilegíveis. O desgaste fora provocado pelo longo uso? Oito, apenas o número oito. Era essa a quantidade de laranjas que eu deveria entregar-lhe.

(Publicado no Outras Palavras, em 13 de junho de 2023.)

Berenice Bento

Primeira laranja

(Deve ser bonita a imagem toda branca das tendas e das pedras, morrendo no azul turquesa do Mar Mediterrâneo. Do alto, deve ser bonito. Lá do céu, não se verá espaços livres. Tudo deve ser branco)

Segunda laranja

(Quase escapa e cai no chão. A mão que a colhia da minha, não conseguia mantê-la firme. Tento escolher as maiores laranjas para ela, mas é um esforço inútil. As suas miúdas mãos não conseguiriam segurá-las. Lá de cima, não se verá ruas, ou nada que lembre uma cidade. Só uma imagem branca)

Terceira laranja

(Receio que uma das oito marmitas possa se abrir e misturar-se às laranjas. O equilíbrio está difícil. Tento ajudá-la a organizar melhor as frutas e as marmitas, mas a cerca não ajuda. De que parte do mundo veio essa criança?)

Quarta laranja

(Estou de pé, na minha frente, as caixas de laranja. Depois, a cerca alta que nos separa: eu, a cerca e a criança. Ela precisa levantar muito os braços com a sacola, para que eu possa colocar as laranjas. Dentro da sacola de supermercado envelhecida, a comida da família. Atrás da criança, outra cerca. Ela está cercada.  E lá fora, os policiais)

Quinta laranja

(Os policiais acariciam suas armas. Parecem ansiosos por usá-las. Eles têm armas.  Os outros, que se amontoam na fila naquele curral – os perigosos – têm sacolas velhas e fome. Eu, laranjas e horror)

Sexta laranja

(Olhei nos olhos deles. A fome, ali, é distinta daqueles do curral. Eles têm fome de almas humanas. Devoram-nas com seus olhares malignos. Eles se fazem humanos nutrindo-se da humilhação e desumanização dos seres com sacolas velhas. São famintos e insaciáveis. Não, não era ódio naqueles olhares. Era uma transfusão de humanidade. Tentam encontrar a humanidade que perderam em tempos pretéritos. Talvez em alguma Cruzada. Talvez em alguma colônia. Eu vi a transfusão de humanidade a quatro metros de mim. É um espetáculo tenebroso)

Sétima laranja

(Quem pariu aqueles seres vestidos de armas e preto, com peles brancas?    Teriam brotado daquelas pedras brancas que cobriam o campo? São áridos e duros como suas mães-pedras-brancas)

Oitava laranja

(A criança, com seu sorriso de dentes de leite, me olha e ensaia um: thank you. Desaparece naqueles espaços estreitos de tendas e pedras brancas. Cada mão segura uma alça da sacola. Seu corpo busca o equilibro. Treme. E eu tremo com ela)

 

 

 

 


6 Comentários

  • Lucas Assis
    Lucas Assis

    Uau!!! Uma poesia sociologica! Uma pena que esses filhos de pedras-brancas não tenham sensibilidade e nem humanidade para entender.

    • Berenice Bento
      Berenice Bento

      Sensibilidade e humanidade são coisas que eles já perderam há muito tempo, querido Lucas.

  • Nelma de Mello Cabral
    Nelma de Mello Cabral

    Oi querida, estava trabalhando e vi que chegou e-mail falando de uma nova publicação em seu blog, e imediatamente fui ler, quis comentat, mas não consegui. Fiquei dilacerada, e passei o dia, imaginando essa criança com dentes de leite em meio a tanto horror, contando com um olhar e um gesto de humanidade. Lembrei-me de quando criança em que todas as segundas-feiras meu avô chegava em minha casa com uma sacola de laranjas seletas (suas preferidas) e do prazer e da alegria em descacar as laranjas e entregar a nós, O espetáculo tenebroso que tiveste diante dos olhos e nos apresenta em Oito laranjas me atravessou em vários momentos e a constatação não é ódio, mas ausência de humanidade, me atravessou em vários momentos e dá calafrios.
    Obrigada pelo Levante de seu olhar, levante de gestos e levante da escrita. Um forte abraço. Bj

  • Nelma de Mello Cabral
    Nelma de Mello Cabral

    Oi querida, estava trabalhando e vi que chegou e-mail falando de uma nova publicação em seu blog, e imediatamente fui ler, quis comentat, mas não consegui. Fiquei dilacerada, e passei o dia, com essa criança com dentes de leite em meio a tanto horror, contando com um olhar e um gesto de humanidade. Lembrei-me de quando criança em que todas as segundas-feiras meu avô chegava em minha casa com uma sacola de laranjas seletas (suas preferidas) e do prazer e da alegria em descacar as laranjas e entregar a nós, O espetáculo tenebroso que tiveste diante dos olhos e nos apresenta em “Oito laranjas” me atravessou em vários momentos e a constatação não é ódio, mas ausência de humanidade, me atravessou em vários momentos e dá calafrios.
    Obrigada pelo Levante de seu olhar, levante de gestos e levante da escrita. Um forte abraço. Bj

    • Berenice Bento
      Berenice Bento

      Minha querida amiga, muito obrigada por seus comentários tão fortes. Essa criança de dente de leite não me abandonoubmais. Volto para o Brasil com um novo lugar no mundo: o de colonizada e revolucionário. Tenho uma indignação tão grande no peito, que às vezes acho que vou explodir.

  • Nelma de Mello Cabral
    Nelma de Mello Cabral

    Que poema!!! Volto nele pela quarta vez. Escrevi ontem sobre como me afetou aqui, mas acho que não enviei, E como voltei mais uma vez
    Duro, árido, cortante, cruel, triste e necessário, mas não só, ele apresenta também um LEVANTE DE IMAGENS, LEVANTE DE GESTOS, mãos que se levantam para receber e outras para entregar laranjas, LEVANTE DE OLHARES para a desumanização e para a busca da sobrevivência ainda que em “espaços estreitos de tendas e pedras brancas”, LEVANTE DE VOZ, através de sua escrita que chega até nós nos fazendo tremer e tremer e dizer, obrigada querida por se dispor a registrar os horrores deste tempo e buscar de forma poética nos apresentar a desejo (indestrutível) de viver,… que resiste e resiste.

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