Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal


A crescente mobilização pelo reconhecimento pleno de ativistas trans (transexuais, travestis, intersexos, transgêneros e queer) em diversos países tem possibilitado conquistas, a exemplo das leis de identidade de gênero espanhola, argentina, uruguaia e inglesa. De forma geral, essas legislações normatizam as cirurgias de transgenitalização e a mudança nos documentos para as pessoas trans. Entre as legislações há diferenças consideráveis. No Brasil, no entanto, há uma criatividade inédita no cenário internacional: inventou-se o nome social para as pessoas trans. São normas que regulam o respeito à identidade de gênero em esferas micro: nas repartições  públicas,  em  algumas  universidades,  em  bancos.  Assim,  nas  universidades que aprovaram a utilização do nome social, os estudantes trans terão sua identidade de gênero respeitada. E como podemos explicar a nossa singularidade? Seria um descaso do Legislativo? Certamente, o vácuo legal pode ser lido por uma óptica conjuntural, e ao analisar a composição das forças no Congresso Nacional seremos tentados a pensar que é devido exclusivamente à hegemonia conservadora que ora domina o Parlamento que surgiu o nome social. 

No entanto, o caso “nome social” traz dados para análise que nos permitem pensar  como  as  elites  econômicas,  políticas,  raciais,  de  gênero  e  sexual  se  apropriam  da  estrutura  do  Estado  para  frear  e  impedir  a  ampliação  e  a  garantia  de direitos plenos às populações excluídas. Vale ressaltar, para fugir de análises dicotômicas e binárias, que ao lidar com a noção de “elite” não estou considerando-a como um todo homogêneo e contínuo. Quando fazemos as operações de deslocamentos, via as interseções dos marcadores da diferença, o sujeito que se apresenta como “elite de gênero” pode descolar-se desta posição e ser reconhecido como um excluído  racial.  Este  alerta  inicial  é  importante  para  não  se  pensar  que  há  elites hegemônicas e coesas. Um homem que tem um capital de gênero diferenciado de uma mulher, por exemplo, perde posições de poder se ele é negro e gay.

O que vou sugerir como tese principal deste artigo é que há um modus operandi  historicamente  observável  das  elites  que  estão  majoritariamente  nas  esferas da representação política no Brasil, qual seja: a votação/aprovação de leis que garantem conquistas para os excluídos (econômicos, dos dissidentes sexuais  e  de  gênero)  são  feitas  a  conta-gotas,  aos  pedaços.  E  assim  se  garante  que os excluídos sejam incluídos para continuarem a ser excluídos. As análises de Sérgio Buarque de Holanda sobre a organização do Estado brasileiro e do espaço público mantém seu vigor. Nas palavras do autor, a democracia no Brasil foi sempre um mal-entendido, um exercício verborrágico de bacharéis que traziam para o espaço público valores familiares. Ao conceder cidadania pouco a pouco para as pessoas trans se está repetindo uma estrutura da relação entre Estado e populações excluídas característica da cultura política nacional. 

Mais  recentemente,  as  pesquisas  de  Jessé  de  Souza  (2006;  2010)  têm  sido referências  importantes  para  quem  busca  compreender  a  produção  e  a  reprodução  das  estratificações  sociais  no  Brasil.  No  entanto,  a  noção  de  cidadania precária, conforme discutirei, não pode ser confundida com subcidadania (Jessé, 2006) ou ralé (Jessé, 2010). A cidadania precária representa uma dupla negação: nega a condição humana e de cidadão/cidadã de sujeitos que carregam no corpo determinadas marcas. Essa dupla negação está historicamente assentada nos corpos das mulheres, dos/as negros/as, das lésbicas, dos gays e das pessoas trans  (travestis,  transexuais  e  transgêneros).  Para  adentrar  a  categoria  de  humano e de cidadão/cidadã, cada um desses corpos teve que se construir como “corpo político”. No entanto, o reconhecimento político, econômico e social foi (e continua sendo) lento e descontínuo.

Antes da aprovação da Lei Áurea, foram aprovadas leis, ao longo de cinquenta anos, que libertavam parcialmente os escravos. Antes de tornar-se universal, para as todas as mulheres, o voto feminino foi palco de diversas propostas de restrições, e antes da lei federal entrar em vigor em estados isolados as mulheres  já  votavam.  E  com  a  legislação  trabalhista  notamos  a  mesma  estrutura  se repetindo: primeiro foram regulamentações pontuais ao longo de mais de cinquenta anos. O reconhecimento das uniões estáveis por parte de casais do mesmo sexo também foi precedida de medidas localizadas, a exemplo da inclusão dos/as  companheiros  como  dependentes  em  planos  de  saúde,  da  inclusão  na declaração de imposto de renda. Nestes quatro casos, podemos observar como setores dominantes (raça/etnia, gênero, classe, sexual) se apoderam do Estado e tentam segurar com mãos de ferro seu lugar hegemônico.

 

Para acessar o artigo completo: 

https://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/197/101

Fotografia da capa: precarious.net


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