Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?


Provocados/as pelas repercussões da passagem de Judith Butler pelo Brasil, nos apropriamos daquela experiência para pensarmos nossos próprios dilemas. Em artigo que escrevi dias antes da chegada da filósofa ao Brasil, afirmei: “Eles dizem que não vão deixar Judith Butler falar. O que faremos? Vamos, mais uma vez, potencializar este momento” (Bento, 2017:01).

Judith Butler tem sido uma grande inspiração para me ajudar a entender o mundo em que habito. Há algo recorrente no seu pensamento: o tencionamento dos sentidos que o Ocidente atribui à humanidade. A politização do luto tem na pergunta “por quem choramos?” uma síntese de que não basta ter um rosto (nos termos de Levinás, 2005) para que o mandado “não matarás” se efetive. 

O que faz com que o Outro não seja reconhecido como humano? Mais do que tentar responder a esta questão, vou apresentar um conceito que venho trabalhando nos últimos meses: o de necrobiopolítica, para entender as diferenças abissais da ação do Estado em relação a determinados grupos e a distribuição diferencial de direito à vida. Antecipo que a pesquisa está em andamento tanto na construção analítica quanto na sistematização dos dados dos recortes empíricos eleitos, quais sejam: o estudo da Lei do Ventre Livre, a situação da população carcerária e os autos de resistência. 

O que se pode observar nos estudos sobre a violência contra a população negra, nos dados do feminicídio e do transfeminicídio (Bento, 2016), dos povos indígenas, entre outras, é que o Estado aparece como um agente fundamental na distribuição diferencial de reconhecimento de humanidade. Nas pesquisas sobre gênero e sexualidade, campos de estudo que acompanho mais de perto, observo que há um núcleo de referência bibliográfica regular. O conceito de biopoder de Michel Foucault (1999), como técnica de governo que tem como objetivo “fazer viver, deixar morrer”, é recorrente. Mais recentemente, os textos de Giorgio Agamben (homo sacer/vida nua), de Achille Mbembe (necropoder), de Judith Butler (vidas precárias, abjeção e vulnerabilidade), de Spivak (subalternidade e discurso) passaram a compor o cânone do que se pode chamar de uma ciência social das identidades abjetas, identidades que são a alma das necrobiopolíticas do Estado. O terror e a morte são elementos reiteradamente analisados por nós como estruturantes do Estado brasileiro. Quando as pesquisas se referem à violência do Estado contra os corpos abjetos, geralmente se aciona a noção de “soberania” em contraposição à de governabilidade (conjunto de técnicas voltadas para o cuidado da vida, da população). Sugiro outro conceito: necrobiopoder. 

O foco das minhas reflexões está no Estado, em um esforço para entender a relação entre biopolítica (dar a vida) e a necropolítica (promover a morte). Não terei como objeto de análise os efeitos do necrobiopoder nos atos de reconhecimento nas relações sociais difusas. As agressões e mortes das travestis; o ato de amarrar um homem negro a um poste; um jovem que tem a testa tatuada com a frase: “Sou ladrão e vacilão”; o assassinato de uma moradora de rua em Copacabana; uma adolescente estuprada por 33 homens são fatos que guardam certa correspondência com as necrobiopolíticas, mas merecem análises singulares. Certamente a violência difusa revela linhas de continuidades com o que estou chamando de necrobiopoder, conceito que proponho para interpretar um conjunto de técnicas de governabilidade. 

Conforme discutirei, a governabilidade não se refere exclusivamente ao cuidado da vida, como propõe Foucault (1999). Minha hipótese é a de que a governabilidade, para existir, precisa produzir interruptamente zonas de morte. Ou seja, governabilidade e poder soberano não são formas distintas de poder, mas têm, pensando no contexto brasileiro, uma relação de dependência contínua – seja numa abordagem sincrônica ou diacrônica. 

Na história brasileira do Estado, “dar a vida e dar a morte” não podem ser pensados separadamente. Quando eu digo dar a vida e dar a morte me distancio da posição de Foucault, segundo a qual o Estado moderno tem como fundamento “fazer viver, deixar morrer”. 

O verbo “deixar” sugere que o Estado não irá desenvolver políticas de morte. Ao contrário, afirmo que há uma reiterada política de fazer morrer, com técnicas planejadas e sistemáticas. Ao mesmo tempo, me distancio também de Agamben (2013) porque nem todas as vidas são nuas. Algumas nascem para viver, outras se tornam vidas matáveis pelo Estado. O conto político “homo sacer” (Agamben, 2013) serve muito pouco para interpretarmos a necrobiopolítica brasileira. 

Foi o necrobiopoder que nutriu e engordou aqueles/as que foram chamados a fazer parte da “população”. Um país que por 388 anos extraiu sua riqueza de “sombras personificadas” (Mbembe, 2014) não pode deslocar “vida” de “morte”. Necropoder e biopoder (vida matável e vida vivível) são termos indissociáveis para se pensar a relação do Estado com os grupos humanos que habitaram e habitam o Estado-nação. 

Para acessar o artigo completo:

https://www.scielo.br/j/cpa/a/MjN8GzVSCpWtxn7kypK3PVJ/?format=pdf&lang=pt

Imagem da capa: retrato de mulher negra com criança às costas e cesto de bananas na cabeça – Marc Ferrez/ Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles


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