O belo, o feio e o abjeto nos corpos femininos


David Hume (2000), em uma perspectiva subjetivista, irá potencializar aquele dito popular de que gosto não se discute. Segundo ele, cada pessoa deveria se contentar com seu sentimento sem desejar controlar o dos outros. Seria inútil estabelecer ou definir uma beleza real, ou uma deformidade real. Ao contrário, sugiro que gosto individual se discute, porque é resultado de múltiplos determinantes. Não são os sujeitos isolados que, idiossincraticamente, irão distribuir elogios e recusas às formas, principalmente às corpóreas. A interpelação “Que feio!” é uma citação, uma polifonia que antecede a cena e ao próprio sujeito da interpelação. 

Aquilo que se supõe ser o que singulariza os sujeitos, o gosto pessoal, está amarrado a uma cadeia de sentidos construído historicamente que antecede a minha existência. As lutas políticas por emancipação e reconhecimento também são lutas contra determinadas estéticas da existência. Não foi exatamente isso que o movimento negro fez e segue fazendo quando afirma que “black is beautiful”? E nesta insígnia de luta está algo mais do que uma agenda política objetiva. Sua enunciação nos desloca para a tríade reconhecimento/luta por reconhecimento/desejo, nos termos proposto por Axel Honneth (2003). Um dos efeitos da luta por reconhecimento é o deslocamento de termos, a criação de novas categorias de inteligibilidade e o esvaziamento de outros.

Karl Marx (apud Eco, 2015a) também discutirá a relação entre beleza/feiura, mas numa perspectiva oposta à de Hume. Ao discordar de uma visão individualista, dirá que o dinheiro, com seu dom mágico e absoluto, consegue transformar o feio em belo. Para ele, aquilo que sou e o que eu posso, não são efetivamente determinados por mim, como uma qualidade inerente do meu ser, mas por condições externas: o quanto de dinheiro tenho na carteira. Mas esta visão materialista desconsidera que as estéticas corporais estão relacionadas a concepções morais. A quantidade de dinheiro que alguém possui não será suficiente para apagar as marcar nos corpos construídos como inferiores. A ascensão social não tem a capacidade de apagar as marcas dos corpos (negro, índio, travesti).

A relação entre belo/bom, feio/ruim é um dos eixos centrais da obra do filósofo hegeliano alemão Karl Rosenkrantz (apud Eco, 2015b: 138, 154, 256, 263, 312; Ferrer, 2017). Cesare Lombroso (2013) fez uma aproximação com as teses de Rosenkrantz ao estabelecer a relação entre criminoso nato e fisionomia. Para ele, há uma relação entre características físicas (consideradas feias) e moralidade. 

Não é objetivo deste artigo fazer uma discussão sobre a relação entre moral e feiura/beleza, tampouco sobre o vínculo entre feiura/maldade e beleza/bondade. Pode-se, contudo, inferir que a estética seja uma das chaves explicativas para compreender a constituição das noções de raça, elemento estruturante da biopolítica (Foucault, 1999) nos Estados modernos. A escravidão, experiência história determinante para explicar quem somos nós, tem na relação entre corpos negros, feiura, corpos sem alma e degenerescência moral elementos que irão justificar sua existência. Noções hegemônicas e dissidentes de estética são formas de distribuir os corpos em posições hierárquicas que visam organizar e disciplinar o desejo. Conforme tentarei apontar, parte considerável daquilo se nomeia como “feio” seria mais bem compreendido se acionássemos um terceiro termo: abjeção, principalmente quando transitamos no campo das experiências históricas desumanizadoras. 

As noções de belo e feio que nos atravessam são atos políticos e têm efeitos no mundo da vida. No entanto, não estou convencida de que o feio seja a negação do belo. Será que qualquer feio estaria fora do mapa social? Conforme tentarei apontar, há níveis diferenciados de feiura dentro do feio e de beleza dentro do belo. Trata-se, portanto, de fugir de um campo analítico binário. Daí a importância da noção de abjeção para operar a ruptura dos binarismos analíticos referente às estéticas. O objetivo deste artigo será propor uma quebra nesta linha de continuidade (belo-feio) ao sugerir que a falta de inteligibilidade e, portanto, não reconhecimento, não cabe nas noções de “feiura”, mas de abjeção. Qual seria o “feminino” abjeto? Esta será a pergunta-guia deste texto. Esta discussão será realizada em três momentos: i. Belo é feio, feio é belo; ii. Beleza abjeta? iii. Corpos não humanos: da abjeção ao transfeminicídio. 

 

Para ler o artigo completo, acesse:

https://www.scielo.br/j/se/a/FL6YVY3NCjKjmGQJTk5Q78p/?format=pdf&lang=pt

 

Imagem da capa: ilustração da capa do livro “História da feiúra”, organizado por Umberto Eco (2007).


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