Disforia de gênero: geopolítica de uma categoria psiquiátrica


Em maio de 2013, a quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental (DSM) foi publicado. Após cinco anos de intensos debates envolvendo especialistas, ativistas de direitos humanos, profissionais psi. (psicólogos, psiquiatras e psicanalistas), operadores da saúde, finalmente, conhecemos as resoluções finais aprovadas na assembleia da Associação de Psiquiatras Americanos (APA).

O DSM é um manual da Associação de Psiquiatria Norte-Americana. O caráter de associação nacional, no entanto, não impede que haja um desejo expresso de que seus achados clínicos, por seu suposto caráter científico, tenham um alcance global. Conforme tentarei sugerir, esta busca de verdade universal pode ser interpretada como parte de um projeto epistemológico colonizador, uma vez que não é possível universalizar concepções locais de gênero (que no contexto estadunidense são atravessadas pela visão medicalizante e psiquiatrizante da vida) para as múltiplas expressões de gênero inseridas em culturas diversas.

Desde que o DSM começou a ser publicado em 1952, foram editadas cinco revisões2. Ao longo destes anos, o que se notou foi um aumento considerável de doenças diagnosticadas como “transtorno mental”. Há uma alentada bibliografia que discute as motivações ditas e não ditas desta inflação de transtornos psiquiátricos, entre eles, a crescente influência da indústria farmacêutica nas decisões dos membros dos Grupos de Trabalho (GT) que compõem as Forças Tarefa (FT) responsáveis pelas revisões (Kirk et Kutchins, 1998; Russo, 2004, 2006).

As 948 páginas do DSM-5 estão estruturadas em: prefácio, seção I (informações básicas sobre o DSM-5), seção II (critérios diagnósticos e códigos), Seção III (instrumentos de avaliação e modelos emergentes), apêndice. Na seção II encontram-se os “critérios diagnósticos e códigos” para os 22 tipos de transtornos psiquiátricos (por exemplo: transtorno bipolar e transtornos relacionados; transtornos depressivos; transtorno de ansiedade, etc). Apenas 03 diagnósticos não levam em seus títulos a tipificação “transtorno”. São eles: Disforia de gênero; Disfunções sexuais; e Espectro da esquizofrenia.

A pesquisa que realizei ao longo de 2014 teve um recorte preciso: os critérios diagnósticos para a Disforia de Gênero (que no DSM-IV-TR era nomeado de Transtorno de Identidade de Gênero). Concentrei-me nas seguintes partes do DSM-5: prefácio, capítulo Disforia de Gênero (seção I) e formulação cultural (seção III). A pesquisa teve como objetivo geral compreender qual concepção de gênero fundamenta o capítulo “Disforia de Gênero”. Como desdobramento, outras perguntas foram formuladas: como transformar uma categoria cultural (gênero) em uma categoria diagnóstica? Conforme a pesquisa foi avançando senti que seria necessário “mapear” os autores que estavam à frente deste processo de revisão. Ou seja, quem eram os/as pesquisadores/as responsáveis por conduzir o processo de revisão? Voltei-me, então, para o que se pode chamar de rastreamento das notas “pré- textuais”, os conteúdos não ditos que sustentaram as mudanças no capítulo referente à disforia de gênero. A partir daí, outras perguntas foram feitas: Quem eram os membros do Grupo de Trabalho responsável pela reformulação do capítulo “Transtorno de Identidade de Gênero”? Quais os vínculos institucionais destes membros? Qual a bibliografia citada e consultada nos documentos produzidos pelo GT?

Estas três últimas perguntas objetivavam entender se seria possível afirmar se havia uma geopolítica orientada por pesquisadores oriundos de países centrais. Além da composição nacional dos membros do Grupo Trabalho, me questionava sobre os aportes teóricos acionados (principalmente, quais os campos de conhecimento) pelo GT que sustentariam e justificariam suas posições. Conforme apontarei, os dados sobre a nacionalidade e os aportes teóricos revelarão, em boa parte, os limites do alcance do DSM-5. A partir desta incursão nas entranhas do DSM-5 questiono seu principal desejo: a objetividade científica (portanto, universal). O texto está completamente atravessado pelas marcas culturais de seus formuladores, traz as assinaturas culturais de sua origem e não as perde em nenhum momento.

Para o levantamento de artigos produzidos sobre o DSM-5, ao longo do seu processo de revisão, utilizei como descritores os termos “transtorno de identidade de gênero”, “disforia de gênero”, “patologização”, “transexualismo”, “transtorno de identidade de gênero”, “transexualidade”, “transgênero”. Meu recorte temporal foi o intervalo de 2008 a maio 2013, período que compreende o início da revisão à data do lançamento da nova versão do Manual. A metodologia de análise foi a análise de discurso e a técnica, a análise documental. Utilizei os bancos de dados da City University of New York (CUNY).

No primeiro momento da pesquisa, rastreei as referências bibliográficas utilizadas pelo GT Transtorno Sexuais e da Identidade de Gênero que publicaram artigos durante o processo de revisão do DMS-IV-R. Organizei uma pequena tabela com os dados: 1) língua em que o artigo foi escrito; 2) vínculo institucional do autor; 3) ano da publicação; 4) posição que o autor defende em relação à manutenção da categoria gênero como transtorno psiquiátrico; 5) como nomeia as expressões de gênero dissidentes (disforia de gênero, transtorno de identidade de gênero, incongruência de gênero, etc.). Conforme discutirei no subcapítulo “Diga-me quem citas e te direi o que pensas”, esta micro genealogia dos textos que derem suporte às decisões do GT visou entender como foi o processo de construção dos consensos, que culminaram em importantes mudanças no diagnóstico baseado em gênero.

Depois de ler e analisar centenas de artigos, cheguei a um núcleo de quatro artigos considerados referenciais pelo GT. Nestes artigos há recomendações para a nova versão do DSM-5. E como cheguei a este “núcleo central” constituído por apenas quatro artigos? Todos os Grupos de Trabalho envolvidos na reformulação do DSM-IV-R que sugeriram alterações nas redações dos capítulos que estavam encarregados de revisar, tiveram que publicar um relatório intitulado Memo Outlining Evidence for chance 3 (Zucker, et al., 2013) onde apresentaram e justificaram as mudanças nas categorias diagnósticas. No MOEC do GT Transtorno Sexuais e da Identidade de Gênero, afirma que utilizou os seguintes artigos como textos-base:

São eles:

  1. The DSM diagnostic criteria for gender identity disorder in adolescents and adults. (Cohen-Kettenis, P.T., & Pfäfflin, F., 2010);
  2. From mental disorder to iatrogenic hypogonodism: Dilemmas in conceptualizing gender identity variants as psychiatric conditions. (Meyer- Bahlburg, H. F. L., 2010);
  3. The DSM diagnostic criteria for gender identity disorder in children. (Zucker, K. J., 2013);
  4. Queer diagnoses: Parallels and contrasts in the history of homosexualit, gender variance, and the Diagnostic and Statistical Manual. (Drescher, J., 2010).

Portanto, o corpus analítico que utilizarei neste artigo é formado por 1) partes do DSM-5 (anteriormente citadas); 2) os quatro artigos considerados como referência pelo GT, 3) o próprio Memo Outlining Evidence for chance (Zucker et al., 2013) e 4) o artigo Opinions about the DSM Gender Identity Disorder diagnosis: Results from an international survey administered to organizations concerned with the welfare of transgender people (R. S. Vance et al., 2011). Este último artigo traz os resultados de uma pesquisa realizada entre organizações internacionais de ativistas trans e seus dados são amplamente citados pelo MOEC (Zucker et al., 2013).

 

Para ler o artigo completo, acesse:

https://www.redalyc.org/pdf/3509/350947688016.pdf

 

Imagem da capa: https://create.vista.com/pt/photos/lgbt-flag/ 


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