Transexuais, corpos e próteses


“Você já fez alguma cirurgia?” Esta é uma das primeiras perguntas que escutamos quando vamos a uma consulta médica. Esta pergunta não tem sentido. Todos já nascemos cirurgiados. Não existem corpos livres de investimentos e expectativas sociais. Tentarei explicar esta proposição.

Começo com uma imagem: a mulher grávida espera com ansiedade as palavras de seu médico. Já veio muitas vezes fazer a ecografia para saber o sexo de seu bebê, ele/a não se permite ver. A mãe, inclusive, arrisca um prognóstico: “teimoso assim, deve ser um menino”. Aquele aparato mágico passeia por sua barriga, até chegar ali, ao sexo.

Mágico no sentido de construir realidades, expectativas e suposições sobre as performances daquela promessa de corpo. Se o bebê está em uma posição que não permite ao médico ter segurança sobre o sexo, se tentará por outro caminho, até conseguir definir, sem dúvidas, sem ambiguidades, o verdadeiro sexo. “Parabéns mamãe, você terá um menino!”

A futura mãe lhe agradece e vai para sua casa. Antes, porém, não se controlando de tanta felicidade, decide sair às compras, enquanto pensa: “Agora eu posso adiantar o enxoval”. Entra em uma loja. A vendedora lhe pergunta:

” Já sabe o sexo do bebê?” É um menino!

Então, te mostrarei a sessão para os homenzinhos”.

Quando este corpo vir a luz do dia, já carregará um conjunto de expectativas sobre seus gostos, seu comportamento e sua sexualidade, antecipando um efeito que se julga causa. A cada ato do bebê a/o mãe/pai interpretará como se fosse a “natureza falando”. Então, se pode afirmar que todos já nascemos operados, que somos todos pós-operados. Todos os corpos já nascem “maculados” pela cultura. A interpelação que “revela” o sexo do corpo tem efeitos protéticos: faz os corpos-sexuados. Analisar os corpos

enquanto próteses significa livrar-se da dicotomia entre corpo-natureza versus corpo- cultura e afirmar que, nesta perspectiva as/os mulheres/homens biológicas/os e as/os mulheres/homens transexuais se igualam.

Esta é a primeira cirurgia a que somos submetidos. A cirurgia para a construção dos corpos sexuados. Neste sentido, todos somos transexuais, pois, nossos desejos, sonhos, papéis não são determinados pela natureza. Todos nossos corpos são fabricados: corpo- homem, corpo-mulher.

A infância é a época em que se dá os treinamentos necessários para continuar o trabalho de fabricação dos corpos sexuais. Bonecas, panelas, saias, cores delicadas, jogos que exigem pouca força física para as meninas; revólveres, cavalos, bolas, calças, cores fortes para os meninos. Tudo muito separado. É como se as “confusões” nos gêneros provocassem imediatamente confusões na orientação sexual. O grande projeto que articula a panóptica dos gêneros é a preparação dos corpos para a vida heterossexual. Nada escapa aos olhares de um/a pai/mãe cuidadoso/a que observa a forma como seus filhos/as se sentam, caminham, gesticulam, falam. A família, porém, não está só nesta tarefa, articula-se com Estado que, mediante a normatização da vida, naturaliza as relações heterossexuais, a medicina, a igreja, a escola. O projeto de construção dos corpos heterossexuais nunca está concluído.

O que nos revela a experiência transexual? Diz que a primeira cirurgia não foi bem sucedida, que todas aquelas verdades inculcadas desde que se nasce, não foram suficientes para garantir uma identidade, um sentido para suas vidas.

Para a posição oficial o objetivo principal da cirurgia de transgenitalização seria permitir a ascensão à heterossexualidade. Sabemos que para muitos/as pessoas transexuais não é a procura de relações heterossexuais que as/os leva a fazer as cirurgias. Há muitos transexuais masculinos que se definem gays e transexuais femininas que se definem lésbicas. Nestes casos vê-se que, de fato, a sexualidade está deslocada de qualquer referência biológica.

“Então, para que fazer a cirurgia? Qual é o sentido de se ter uma vagina se o que se deseja é manter relações com uma mulher?” Para muitos médicos e especialistas no tema, a homossexualidade está totalmente descartada entre os/as transexuais. Porém, quando uma pessoa afirma: “Eu tenho um corpo equivocado, sou um/a homem/mulher aprisionada em corpo de homem/mulher”, não significa que “ser mulher/homem” é igual a ser heterossexual. Quando a sociedade define que a mulher de verdade é heterossexual se deduz que uma mulher transexual também deverá sê-lo.

As definições do que é um/a mulher/homem “de verdade” se refletem nas definições do que é um/a transexual “de verdade”. A experiência transexual põe em funcionamento os valores que estruturam os gêneros na sociedade. São estas concepções que orientam os médicos e os profissionais da saúde quando se aproximam das pessoas transexuais. Se a sociedade afirma que o normal é a heterossexualidade, logo, se alguém se diz mulher/homem deverá ser heterossexual e deverá ser o objetivo principal que motiva a cirurgia, recuperando-se, assim, o dimorfismo por outros caminhos.

De uma forma geral, se estabelece uma relação direta entre cirurgia de transgenitalização e sexualidade. Diante da questão:

“E se você não sentir prazer depois da cirurgia?”. Quase todos/as respondem: “Tanto faz. O que quero é que se alguém me negar um emprego porque sou diferente, eu possa dizer: mas eu tenho vagina, sou uma mulher”.

Os/as transexuais que reivindicam as cirurgias não são motivados, principalmente, pela sexualidade, mas para que as mudanças nos seus corpos lhes garanta a inteligibilidade social, ou seja, se a sociedade divide-se em corpos-homens e corpos-mulheres, aqueles que não apresentam essa correspondência fundante tendem a estar fora da categoria do humano.

A experiência transexual revela a possibilidade de resignificar o masculino/feminino, mostrando seu caráter performático. As/os mulheres/homens biológicos também, em suas ações cotidianas interpretam o que é a mulher/homem “de verdade”, isto porque a verdade dos gêneros não está no corpo- já nos diz a experiência transexual -mas nas possibilidades múltiplas de construir novos significados para os gêneros. Em última instância, é o que nos diz os/as transexuais, os tranvestis, as drag king, os drag queen, ou seja, as performatividades queer.

 

Para ler o artigo completo, acesse: https://medium.com/revistalabrys/transexuais-corpos-e-pr%C3%B3teses-1ae7e07b76cc

 

Imagem da capa: cena do filme “Meninos não choram” (1999) / Reprodução. 


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