O avanço das agendas conservadores e de extrema direita é uma onda global de reação, entre outras motivações, ao crescente protagonismo de discursos e práticas que questionam modelos tradicionais de família. Será que pensávamos que iríamos teorizar e atuar em torno de questões centrais que sustentam a família e não haveria reação globalizada? Quem acreditou que tínhamos acumulado conquistas suficientes e que estávamos em outro patamar das disputas por reconhecimento, talvez faça uma leitura da história numa perspectiva evolucionista.
Bolsonaro e Trump são personagens deste momento global de reação à uma agenda que amplia as noções e conquistas de Direitos Humanos. Neste contexto, a centralidade da família (ou seja, da sexualidade e gênero) para o Estado-nação foi explicitada. Qual é a instituição central para a formação do sujeito? A família. É no seu âmbito que acontece a socialização primária, momento em que as primeiras verdades que estruturam a subjetividade são reproduzidas. Já sabemos que as relações privadas são relações de poder. Tanto as agendas LGBTQI+ quanto os múltiplos feminismoscolocam em cena outras moralidades. Ter uma filha feminista, ou um filho gay, ou um filho transexual significa, hegemonicamente, uma negação das verdades que foram ensinadas e, supostamente, interiorizadas sem qualquer questionamento. Uma socialização primária bem sucedida refere-se exatamente a ausência de crítica ou fissuras aos ensinamentos desta primeira fase de nossas existências. Aquilo que eu digo, na minha posição de mãe/pai, deve ser interiorizado pelo/a filho/a como verdade, tornando-se força regulatória dos desejos. Mas os sistemas morais falham. Seu desejo de reprodução esbarra em sujeitos que interrompem sua suposta coerência. É neste momento que instaura-se uma crise dos sistemas de legitimidade das moralidades hegemônicas.
Filhos gays, feministas, transexuais são as expressões do fracasso da/do mãe/pai e, portanto, o esvaziamento (ou falta de poder) do seu lugar de reprodutor/a das normais sociais. A solução deste fracasso, da retomada do poder da família tradicional, são tarefas assumidas por personagens que constituem nosso tempo histórico (como Trump, Bolsonaro e Damares Alves). E esta é uma das chaves explicativas para a vitória de Bolsonaro e a adesão de parte considerável da sociedade aos discursos identificados como tradicionais. Tanto a família da elite, quanto a da periferia reproduzem normas sociais que lhes conferem poder na/de formação do sujeito.
Não apenas Damares Alves, mas todos os ministros do governo Bolsonaro têm uma coerência em relação à agenda de retorno a um ideal de sociedade na qual as diferenças (de todas as ordens) não tenham voz no espaço público. O objetivo é barrar a avanço de agendas políticas que construam novas gramáticas morais fortes o suficiente para impulsionar a luta por reconhecimento. O que significa “novas gramáticas morais”? Que estamos diante de novas respostas para o certo e errado, para bom e mau, o belo e feio.
Há um debate conceitual se o governo Bolsonaro poderia ser tipificado como “fascista”, uma vez que esta definição refere-se a uma experiência histórica com características distintas daquelas que estamos assistindo no Brasil. Isso é verdade. Mas há um elemento estruturante do fascismo presente nos discursos em parte considerável dos seguidores do Bolsonaro: o desejo expresso da eliminação do Outro, daquele que representa uma ameaça ao projeto de sociedade livre de quaisquer marcas da diferença. É neste contexto que a ministra Damares Alves se insere. Cada ministério tem a missão de construir e derrotar um inimigo. Ministério da Educação: os/as professores/as. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos: eliminar aqueles/as que questionam a ordem natural (e bíblica) da família heterossexual. Embora haja inúmeros inimigos em sua cruzada moral, são as feministas que assumiram o protagonismo em suas declarações de guerra.
É importante levar a sério o que ela declara. Para cada “bobagem” que ela fala, uma chuva de memes brotam nas redes sociais. Quando ela afirma que “as feministas são feias”, ela recupera o mesmo discurso que vem circulando por longo tempo: feministas não gostam de homens, são sujas, não se depilam. O que está em jogo? A retomada (ressignificada) da feminista como figura abjeta, a bruxa, aquela que deve morrer. Qual foi a figura que usaram para representar a filósofa judia antissionista Judith Butler quando esteve no Brasil em 2017? A bruxa.
O livro Calibã e a bruxa, de Silvia Federici, nos ajuda a entender quais foram os mecanismos e interesses (principalmente os vinculados aos de classe social) articulados por séculos que acabaram resultando nesta memória coletiva perversa que faz coincidir atualmente feminista e bruxas. Damares Alves, talvez não intencionalmente, coloca em discurso séculos de história de construção do feminino como lugar da abjeção.
Nos processos de lutas e guerras, a produção do inimigo como sujo, violento e irracional são reiterados. A construção do inimigo pode estar encarnado na pele do herege, do muçulmano, do palestino ou comunista, mas estes recursos retóricos são elementos estruturantes das guerras contra populações construídas como inimigas. O inimigo se constitui como uma figura que não pode produzir nenhuma identificação, processo mediante o qual eu posso, em algum nível, reconhecer-me no Outro e, mais importante, desejar ser ele. A ausência completa de identificação é uma porta aberta para todos os tipos de violência.
Ao falar de feminismo como uma expressão de mulheres mal-amadas e feias, Damares provoca uma reincitação da produção diferencial dos femininos. O belo estaria identificado com a ordem, com a moralidade heteronormativa. A própria ministra se constitui como referência de feminilidade e estabelece uma linha de continuidade com Marcela Temer, Michelle Bolsonaro, mulheres que se apresentam como sinônimo de um feminino limpo, portanto, verdadeiro e legítimo. Dilma Rousseff e Manuela D’Ávila seriam, ao contrário, as bruxas. O caos da sociedade explica-se, segundo os cruzados morais, pelo negação dessas mulheres em cumprir com os desígnios da natureza feminina. E se assim agem, não são mulheres. “Eliminemo-las!” Esta é consigna da Cruzada/Ministério Mulheres, Família e Direitos Humanos.
As noções de belo e feio não são expressões estéticas esvaziadas de interesses ou reveladores de um gosto individual. O belo é o bom, e o feio, o mau. São expressões de moralidades hierarquizadas. O feio é identificado com as mulheres que questionam, que se posicionam diante das injustiças e reivindicam um lugar de fala no mundo sem pedir autorização.
Enquanto Damares tiver como resposta à sua pergunta diária (“espelho, espelho meu….?”), “sim, porque a última feminista ainda não morreu”, a guerra será contínua.
BERENICE BENTO é professora do departamento de Sociologia da UnB.