Liberdade é não ter medo


Por Berenice Bento

13 de janeiro de 2016

 

(https://revistacult.uol.com.br/home/liberdade-e-nao-ter-medo/)

 

Ela movimenta seus olhos agitadamente. Esta dança do olhar revela o que estava acontecendo em suas entranhas. Como alguém que busca alguma coisa em um baú desorganizado, Nina Simone (no documentário What happened, Miss Simone?), finalmente, encontra a resposta: Liberdade é não ter medo!

O que pode o medo? Tudo. Porque nos torna um corpo sem potência. Na história do homem diante da lei (O processo, de Franz Kafka), os efeitos paralisantes do medo são narrados. Um homem simples pede para entrar na lei. O guarda, no entanto, não o autoriza. O homem pergunta se poderá entrar mais tarde. “É possível. Mas não agora!”, diz o guarda, que se afasta da porta da lei que estava e continua aberta. O homem curva-se para olhar dentro do edifício da lei. O guarda ri e diz: “Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E, ainda assim, sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.

O medo do homem aumenta. A presença onipotente, onipresente e onisciente do guarda, panopticamente lhe recorda que é melhor esperar pela autorização. Os dias, as semanas e os anos se passam. A porta continua aberta. Mas ele espera. Suas súplicas não cessam. O guarda ainda lhe faz, de vez em quando, pequenos interrogatórios. No fim, acaba sempre por dizer que não pode deixá-lo entrar ainda. O homem forte e enérgico que chegara anos atrás na porta da lei não existe mais. Tornou-se um velho. Não articula mais palavras, emite apenas alguns sons de pouca inteligibilidade. Não tendo mais a quem recorrer, pede às pulgas, moradoras do casaco de pele do guarda, que o ajudem a convencê-lo de que já era hora de ele entrar na lei. Sua vista já não lhe permite distinguir dia e noite. A morte anuncia-se.

Talvez ao longo dos anos ele tenha se apiedado de si mesmo enquanto o guarda burlava de sua tristeza. Ou tenha pedido complacência, evocando o merecimento por sua obediência. Mas o binômio “castigo & recompensa” não foi suficiente para convencer o poder. Ele estava inteiramente assujeitado. São esses corpos mortos, zumbis políticos, que alimentam a vida vampiresca do poder. Mas, certamente, é nessa não funcionalidade que está a máxima funcionalidade desse corpo capturado.

Antes de morrer, ousa fazer uma pergunta ao guarda, que se inclina para escutá-lo: “Que queres tu saber ainda?”. “Se todos aspiram à lei”, disse o homem, “Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda responde: “Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.

Transformando esta história em parábola, pergunto: qual o seu ensinamento? Nina Simone já respondeu. Liberdade é não ter medo.

Se ele tivesse ousado entrar?

Primeira hipótese: poderia ter escutado, alguns passos adiante, outros guardiões da lei lhe dizerem que ali não era seu lugar, condenando-o a ser um fora da lei.

Segunda hipótese: diante da lei, ele poderia não reconhecer sua legitimidade.  Afirmaria: Esta lei não me serve. Não me submeterei nem voluntária nem involuntariamente. Prefiro ser um fora da lei. Quebraria, dessa forma, a coluna vertebral da lei, pois se negaria a desejar o desejo da lei. E, assim, a cumplicidade entre poder e obediência, alma mesma da reprodução social, estaria desfeita. Não existe poder sem cumplicidade.

Terceira hipótese: ele poderia, também, ao menos, ter se levantando e caminhado em torno do imponente prédio, morada da lei. Com este simples ato, anteciparia a revelação final do guarda. Descobriria outras portas e outras pessoas esperando para entrar na lei. E, como ele, muitos não entendiam o sentido da lei e o motivo de estarem fora dela. Neste encontro, algo novo seria (potencialmente) produzido. E ele, finalmente, deixaria de negociar com as pulgas para se tornar sujeito de sua história. Entre outros corpos fora da lei, o nosso homem teria a chance de produzir uma ruptura (ou pequenas fissuras) no imenso e poderoso edifício das normas sociais. De onde se esperava obediência, viria a contestação, produzindo curtos-circuitos na reprodução do sistema.

Enfim, ele tinha escolhas. Sabemos, contudo, que a própria noção de escolha, como algo que nasce originalmente no indivíduo, também é uma armadilha. Mas, antes arriscar-se a cair em armadilhas, que ficar “sentado no trono de um apartamento (ou na porta da lei), com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar” (Raul Seixas). De certa forma, a história das transgressões tem em comum este tensionamento (em maior ou menor grau) com os limites impostos pela lei à existência.

Talvez a morte mais triste seja aquele tipo de suicídio diário que tantos de nós comentemos: vivemos morrendo de medo. No obituário do homem diante da lei estará escrito: morreu de medo. E, no de Nina Simone, “viveu e morreu lutando”.


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