Por Berenice Bento
02 de dezembro de 2015
(https://revistacult.uol.com.br/home/familia-entre-o-santo-graal-e-o-exilio/)
A disputa em torno dos sentidos da “família” tem ocupado a atenção nacional (sugiro a leitura do artigo Por uma vírgula). Um momento marcante deste debate aconteceu recentemente, com a aprovação, pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, do parecer favorável ao Estatuto da Família (PL 6583/13). O texto limita a definição de família ao núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher. Contrários ao texto, diversos setores afirmam a existência de configurações plurais dos arranjos sexuais, amorosos e de parentesco e que, portanto, devem ser reconhecidas pelo Estado como “família”.
Apesar das abissais diferenças entre os dois lados da contenda, há algo comum entre eles: a família é disputada como um valor que merece reconhecimento legal. Parece que estamos assistindo a um tipo de disputa que confronta e ressignifica os dispositivos de aliança e o dispositivo sexualidade, nos termos de Foucault. O primeiro funda sua legitimidade em contratos sexuais que visam à transmissão do nome e dos bens pela consanguinidade. Aqui, sexualidade e reprodução sexual apresentam-se indissociáveis. No dispositivo da sexualidade, por sua vez, essas duas dimensões podem estar apartadas e o destino das práticas sexuais não é exclusivamente a reprodução. Ou seja, desejo, reprodução, parentalidade e práticas sexuais não estão condicionados ao contrato heterossexual. Enquanto uma concepção mais vinculada ao dispositivo da aliança exige a exclusividade do selo dourado “família”, a segunda quer compartilhar da santa ceia e beber do cálice santo da(s) nova(s) família(s).
Sou contra a luta pela ampliação dos sentidos de família? De forma alguma. Acredito, no entanto, que há questões pouco discutidas, principalmente no que se refere ao debate sobre a natureza da instituição família, um lugar de abusos e violência. Sim, dirão muitos, mas, também, é o lugar do amor e da proteção. Acho que precisamos girar um pouco o nosso botão crítico para ver que, no espaço invisibilizado do lar, a violência é dos elementos estruturantes das relações no seu interior. Este movimento de abrir a “caixa preta” da família teve início com a palavra de ordem feminista “o privado também é político”. Há silêncios e apodrecimentos que sopram desta instituição milenar, a sacro-santa família, que precisam ser revelados. A grande promessa da família é ser o lugar fundante de nossa condição humana, o lugar dos primeiros vínculos, de aprendizagem, da proteção e cuidado. Promessas, geralmente, não cumpridas e frustadas.
Na mitologia judaico-cristã, temos um Deus-Pai, vingativo, que não perdoa nenhum tipo de desobediência do/a filho/a. Qual foi o pecado de Adão e Eva? Desobedecer. A pena: a expulsão de casa.
O castigo de Eva:
“[…] Vou fazê-la sofrer muito em sua gravidez: entre dores, você dará a luz seus filhos; a paixão vai arrastar você para o marido, e ele a dominará” (Gênesis, Bíblia).
Então, a violência de gênero é sagrada? A maternidade é sinônimo de sofrimento?
O castigo de Adão:
“Já que você deu ouvido à sua mulher e comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua causa” (Gênesis, Bíblia).
Continuando a história dessa família nada afetuosa, vamos encontrar a inveja de um irmão por outro. Como o conflito é resolvido? Um irmão mata o outro. Que família exemplar! A cada novo ato de desobediência, o pai castiga, aplica sua própria lei. Aqui, o aprendizado, ou humanização, se efetiva pela dor e pelo castigo. Na narrativa bíblica, temos uma sucessão de membros de famílias que se matam, filhas que procriam com o pai para a manutenção da linhagem. Enfim, pouco amor e muita dor.
É possível ressignificar esta instituição? As travestis já fazem isto há décadas, à margem de qualquer Estado. Se a família de origem as exilou, elas a reconfiguram. Estratégias de sobrevivência nos são apresentadas e, neste caso, tornam-se estratégias de resistência. Famílias inventadas, construídas por afinidades, e, não, por laços sanguíneos. Organizar redes de apoio e solidariedade, para além da visão normativa do Estado, é a marca de grupos de pessoas que foram expulsas de suas famílias, e que passam a conferir à amizade um caráter singular como espaço de construção e manutenção de vínculos afetivos. Como esquecer a solidariedade entre os gays soropositivos na década de 80?
Há muito a família passou a ser estudada como o espaço da violência e outra história da principal instituição responsável pela reprodução e socialização primária dos sujeitos sociais foi e está sendo contada. Maridos que matam suas esposas, filhos e filhas abusados por pais e mães. Filhos e filhas expulsos por terem um comportamento desonrador. Esta dimensão da violência que destrói vidas e mina subjetividades ainda é anemicamente estudada, principalmente pela psicanálise, saber que atribui às relações que acontecem nos marcos desta instituição a responsabilidade por nos constituirmos como sujeitos.
Marlene Wayar, ativista travesti e teórica argentina, nos relata, em La família, lo trans, sus atravesamientos, o caso de uma menina trans que morreu, segundo o pai, vítima de uma queda brusca da escada. Os vizinhos, no entanto, dizem que ele a matou a golpes por não suportar a obstinação “do filho” em se vestir de menina. A preservação da honra da família estaria, portanto, na eliminação do membro que desgraça o nome da família. Portanto, a lógica de lavagem da honra, mediante o assassinato, ainda é uma narrativa e prática que está em pleno funcionamento.
No filme “Os sapatos de Aresteu” (direção de René Guerra), o corpo de uma travesti morta é preparado por outras travestis para o velório. A família, após receber o corpo, decide enterrá-la como homem. Seu cabelo é cortado, o esmalte das unhas desaparece, assim como todos os outros signos que conferiam feminilidade ao corpo morto. A mãe e a irmã cometem um assassinato simbólico, matam o Aristeu mulher. A irmã, olhando com desprezo o corpo da irmã, afirma: Ele envergonhou nossa família e, além de tudo, foi embora e nunca mais deu notícia. A mãe retruca: Eu pedi para ele sair de casa e não dar mais notícias. Nesse momento, a mãe atualizou a cena da expulsão do paraíso.
Certamente, vários de vocês, que estão me lendo, foram expulsos de casa e têm uma relação nada aprazível com a “família”. E, na cena do funeral, temos outra citação, agora a do destino trágico do velho Édipo (“Édipo em Colono”). Ele foi proibido de ter seu corpo enterrado nas terras de sua pátria. O exílio manteve-se até durante a morte. Aristeu também foi exilado do seu corpo, sua morada mais íntima, no ato de sua morte.
“Mas isso é ficção”, dirão alguns. Luciane Jimenez, em sua tese de doutorado intitulada “Corpos profanos e transformados: prostituição e prevenção em tempos de AIDS”, nos conta a história de uma travesti que foi assassinada. Sua mãe, depois de um longo período de ausência, preparou o corpo para o sepultamento como homem, para a perplexidade de todas as amigas, da esposa (a jovem travesti assassinada era lésbica), das filhas e de outros presentes. Eu pari um filho e assim ele será enterrado, sentencia a Lei Materna.
Das inúmeras dissertações, teses, monografias que li e/ou orientei sobre a população LGBT, um fio condutor, mais ou menos nítido, atravessa essas pesquisas: a violência que sofreram e sofrem em suas famílias. Destaco a tese de Edith Modesto, “Homossexualidade, preconceito e intolerância: análise semiótica de depoimentos”. A cada novo depoimento que eu lia, sentia uma corrente elétrica atravessar o corpo. Uma dor física e uma indignação obrigavam-me a diminuir a velocidade da leitura. Cenas de pais e mães cruéis e torturadores estão espalhadas ao longo de toda a tese. Da perspectiva científica, é necessário entender os sentidos das ações daqueles que maltratam suas/seus filhas/filhos. Mas isso não é suficiente. Como um/uma pai/mãe repete que prefere ter a/o filha/filho morta/o a vê-la/o se tornar bicha, lésbica ou travesti?
Ainda são muitas caixas pretas (ou Caixa de Pandora) da instituição família que precisamos abrir. E outra começa a ser aberta: as histórias de meninos e adolescentes abusados e estuprados dentro de suas casas por parentes.
Há múltiplas formas de conjugalidades que acontecem à margem do normatizado e que não demandam reconhecimento legal. Voltemos ao caso da travesti estudado por Luciane Jimenez. Durante muito tempo, ela foi casada com um homem. Sofreu agressões. Separou-se. Conheceu uma mulher. Apaixonou-se. Passaram a viver juntas e tiveram filhos. A pluralidade de configurações ou, mesmo, as mudanças que cada sujeito experimenta ao longo de sua vida, no âmbito da conjugalidade, nos diz que nos movemos em um terreno movediço, sem posições fixas ou determinadas por um a priori ancorado na estrutura biológica. O demiurgo do desejo não é a dupla dinâmica progesterona e testosterona.
Essa multiplicidade de acordos e arranjos de conjugalidades e parentalidade que disputa espaços legítimos de existência está à nossa volta. Exigir legitimidade passa, porém, por exigir reconhecimento do Estado? A vida vivida não está para além do Estado? Que lugar é este, o Estado, que passou a ser a Meca de nossos sonhos e desejos? Ao mesmo tempo, devemos nos perguntar como fazer este duplo movimento: ampliar os sentidos de família e, ao mesmo tempo, não abandonar a crítica a uma instituição que, hegemonicamente, funda-se na violência para se reproduzir.