Por Berenice Bento
16 de dezembro de 2015
(https://revistacult.uol.com.br/home/pinkwashing-brasileira-do-racismo-cordial-lgbtttfobia-cordial/)
Em uma conversa com um colega, professor de uma prestigiosa universidade de Nova Iorque, percebi que o Estado brasileiro também faz pinkwashing. Este é o nome (um jogo de palavras com whitewash, produto utilizado para pintar paredes, conhecido entre nós como cal) que se utiliza para denunciar o engodo do Estado de Israel como país democrático. Por meio de várias campanhas midiáticas, este Estado tenta limpar, lavar sua imagem de país conhecido e condenado por organismos internacionais de direitos humanos por sua sistemática política de violação dos Direitos Humanos do povo palestino. Quando são discutidas as campanhas que o estado racista de Israel realiza para promover a imagem de que, ali, a democracia impera, é comum escutarmos: “Isso é puro pinkwashing”, ou seja, não passa de uma farsa.
O pinkwashing brasileiro é feito com as letras da lei, um tipo de cultura política hegemônica bem conhecida pela população negra e que, nos últimos tempos, estende seus tentáculos para a população LGBTTTs (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros). No Brasil, desconhecemos a experiência da segregação legal. Esta exclusão, no Brasil, é escamoteada por uma suposta democracia de fachada, o que, de certa forma, reatualiza os mesmos desafios enfrentados pela população negra para alcançar o pleno reconhecimento de sua condição humana.
Um dos exercícios que gosto de fazer quando estou fora do Brasil é perguntar a colegas estrangeiros o que eles sabem do Brasil. As respostas não variam muito. Entre a curiosidade e a falta total de conhecimento, é comum escutar: o Brasil é a terra do samba, do futebol e da liberdade sexual. Mesmo entre meus colegas professores universitários são os estereótipos, os mapas que lhes possibilitam dissertar dois ou três minutos sobre o país do carnaval.
Na conversa com este meu colega, a ideia de que vivemos em um país que tem o dom de conviver com as diferenças de forma harmoniosa descolou-se da questão racial para a questão LGBTTT. Uma suposta cordialidade parece caracterizar as representações hegemônicas em torno das relações sociais brasileiras e, com foco mais fechado, nas relações entre as diversas expressões de sexualidade e de gênero.
Com olhos de profunda surpresa, ele acompanhava meus comentários sobre o perigo de ser LGBTTT no Brasil. Sabemos da situação trágica dessa população em alguns países do mundo. Temos conhecimento de que o Estado apresenta-se como o principal algoz na produção da LGBTTTfobia institucionalizada e que a noção de soberano, apontada por Giorgio Agamben (homo sacer) anuncia-se com toda dramaticidade em muitos países. O Estado atua como ente que sacrifica vidas legalmente. No Brasil, no entanto, há um paradoxo entre os níveis legal e o real. No mundo das leis, todos somos iguais. Caberia ao Estado assegurar a materialização desta igualdade formal mediante a implementação de políticas públicas universais. No mundo real esta aparente igualdade dissolve-se no ar.
O contexto brasileiro para os LGBTTTs não está desconectado de uma cultura política nacional que se caracteriza por fazer o excluído “limpar” suas marcas de diferença para ser aceito. E, mais uma vez, gostaria de fazer uma aproximação com a situação da população negra. Ainda é comum escutarmos pessoas negras afirmando que não sofrem nenhum tipo de preconceito porque sabem o seu lugar. As máscaras brancas nas peles negras (Franz Fanon) ainda têm considerável eficácia no controle das relações sociais. Qual é este lugar? Qual é o comportamento aceitável? Na tentativa de negar o racismo, o que esta afirmação revela é a dramaticidade de uma subjetividade forjada na vergonha: ser uma pessoa negra é ter um lugar diferente no Brasil. É um tipo de segregação subjetiva que torna difícil o combate político, pois o excluído interiorizou esta diferenciação hierarquizada como natural.
Outro efeito deste dispositivo do medo e da vergonha seria a própria vítima, quando consegue sobreviver aos atos de violência, não denunciar o agressor seja porque naturaliza a violência contra si (como se ela merecesse a punição por não agir de acordo com seu lugar natural) ou seja porque sabe que não adianta acionar o Estado demandando justiça via ação criminal.
No âmbito das vidas LGBTTTs é recorrente encontrarmos narrativas de pessoas que se sentem blindadas da violência por se comportarem conforme as expectativas sociais: sou gay, sou homem e me comporto como homem. Ou: sou lésbica e não abro mão do meu lugar de mulher. O “reconhecimento”, tanto na questão racial quanto na dimensão das homossexualidades e dos gêneros dissidentes, se dá por mecanismos de apagamento das diferenças e não pelo reconhecimento da diferença. Ou seja, acontece via assimilação. O sujeito transviado, no Brasil, não se restringe exclusivamente aos LGBTTTs. São os que não conseguem inserir-se completamente na categoria humanidade, tampouco usufruem da condição de cidadania plena estabelecida na e pela Lei.
Nos marcos das contradições que marcam o Brasil, diria que sofremos de um “racismo cordial” e de uma “LGBTTfobia cordial”, na medida em que não há uma segregação legal e o “outro”, os seres transviados que constituem a nossa Nação (a população negra e os LGBTTTs) tem o mesmo estatuto legal que os não transviados. Este é o nosso pinkwashing. Ou, pirateando Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), diria que a noção de democracia real entre nós nunca passou de uma fina camada de verniz no belo e ostentoso edifício da República. Qualquer esbarro retira essa fina camada e revela o simulacro de democracia que nos atravessa, tal qual o pinkwhashing israelense.
Certamente, é impossível unir dois termos que não poderiam ser postos juntos: cordialidade & racismo e cordialidade & LGBTTTfobia. Na realidade brasileira, no entanto, esta impossibilidade se efetiva e, talvez, seja uma singularidade nacional. Como se configura a noção de cordialidade, nos termos que estou propondo aqui? Se há igualdade legal, a responsabilidade pelo fracasso recai exclusivamente nas costas do fracassado. Se há condições legais que garantem a igualdade e se todos são livres, o único responsável por não conseguir se inserir, por exemplo, no mercado de trabalho ou ingressar na universidade é o negro. Se o gay é agredido, o único responsável pela agressão é ele próprio, que deve ter feito alguma coisa errada para desencadear a fúria do agressor. E, no caso dos gays e lésbicas, é comum escutarmos pessoas heterossexuais afirmando que não têm nada contra “essas pessoas”, desde que elas se comportem devidamente. O que significa que elas/eles não podem ultrapassar os limites performáticos dos gêneros e que, tampouco, lhes são permitidas quaisquer demonstrações de carinho no âmbito do espaço público.
Os efeitos de um suposto país democrático é a produção de apagamentos das condições econômicas, sociais e históricas que produziram determinada realidade, encontrando no indivíduo o início e o fim de todas as explicações para determinadas exclusões.
Talvez seja um pouco complicado para um estrangeiro entender como um país que tem legislações tão avançadas, ao mesmo tempo, convive com níveis tão elevados de exclusão, preconceito e violência cruenta. No Brasil, é comum escutarmos: “Esta lei é para inglês ver”. O que significa dizer que a lei não será efetivamente cumprida e existe apenas para dar uma satisfação para o mundo moderno. Ou então: “Aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. Este ditado popular opera com grande eficácia na distribuição de bens materiais e políticos entre os donos do poder no Brasil.
O “racismo cordial” e a “LGBTTTfobia cordial” se caracterizam pela possibilidade de convivência pacífica, na medida em que a/o excluída/o não ouse cruzar determinadas linhas e se contente com a ficção da igualdade legal. Mas, quando há a “invasão de fronteiras”, e quando a luta se dá nos marcos do reconhecimento, os conflitos se instauram.