Por Berenice Bento
30 de março de 2016
(https://revistacult.uol.com.br/home/as-garotas-dinamarquesas/)
Para Vanessa Leite e Guilherme Almeida,
territórios de amor
Ao longo das últimas semanas escutei várias críticas ao filme A garota dinamarquesa (dirigido por Tom Hooper), entre elas: o equívoco de não ser uma atriz transexual a contratada para interpretar Lili Elbe, a protagonista; o reforço dos estereótipos femininos; a completa desconexão entre os fatos reais que marcaram a vida daquela considerada a primeira mulher transexual a realizar uma cirurgia de transgenitalização. O filme foi “vendido” para o público como uma narrativa verdadeira, no entanto, foi baseado em uma obra de ficção (A moça de Copenhague, Ebershoff). Estamos diante de uma ficção de outra ficção. Talvez fosse preciso se perguntar o porquê deste desejo de “verdade” na obra de arte. Neste caso, seria um truque mercadológico?
Entre as disputas de verdade e ficção e as divergências que se produziram em torno do filme, desloco o meu olhar para outra dimensão que, a meu ver, são os temas centrais do filme: o amor e o cuidado. Não tenho, aqui, a preocupação de fazer uma análise que busque a verdade dos fatos, a coerência da relação entre obra e vida da personagem protagonista. Vou considerar o filme como na narração de uma história que toca rizomaticamente quem lhe assiste. Ao fazer isso, não estou negando a importância das disputas que estão em curso em torno do filme.
O efeito do filme sobre minha subjetividade foi remeter-me à minha memória. Há alguns anos, eu acompanhei uma amiga numa cirurgia de transgenitalização. Depois da cirurgia, ela ficou na enfermaria feminina. Para evitar constrangimentos, ela dizia para as outras mulheres que tinha nascido com dois sexos e que a cirurgia teve como objetivo corrigir este “erro da natureza”. No segundo dia à cirurgia era possível ver a barba aparecendo em seu rosto. Nas poucas horas de visita permitida, eu tentava ajudá-la a retirar os pelos de seu rosto. Mesmo assim, a notícia de que tinha “uma bicha” internada na enfermaria feminina se alastrou como pólvora no hospital. A minha amiga desenvolveu um quadro de febre e de infecção incomum. Ela atribuiu à alteração física ao medo que sentira quando viu um homem que, no dia anterior, ficou passando lentamente em frente à sua enfermaria, descascando uma fruta e apontando sutilmente a faca para ela. O olhar ameaçador deste homem, a faca e a solidão foram os motivos que teriam alterado a sua recuperação, me dizia ela. Certamente, se alguém estivesse ali, naquele momento, para protegê-la deste e de outros insultos que aconteceram, o seu quadro clínico poderia ser outro e não teria sido necessário ela ficar mais quarenta dias internada.
Relembro esse episódio tão somente para chamar a atenção para a centralidade de Gerba, a esposa de Lili, em toda a narrativa fílmica. Lili diz ao médico: “Eu acredito que eu sou uma mulher”. E Gerba, ainda no mesmo sopro da respiração de Lili, afirma: “Eu também acredito”. Este foi um enunciado de amor tecido por uma delicada rede de cumplicidade e confiança entre as duas. É lugar-comum escutar que o verdadeiro amor não se alimenta do ciúme, mas do desapego. Amar não pode ser uma projeção do meu desejo e uma tutela do comportamento do outro, etc, etc. As garotas dinamarquesas se amavam. As duas eram protagonistas naquela história. Um amor que foi sendo ressignificado ao longo dos processos de mudanças que cada uma trazia para a relação. A fama, Paris, os desejos, a mudança de gênero são acontecimentos que exigiam das garotas novos reposicionamentos. Mas elas continuavam juntas. Entre elas se consolidou uma pétala de delicadeza: o cuidado.
Conforme eu disse, não estou aqui buscando a verdadeira história de Lili, numa jogo de disputas entre o verdadeiro e o falso, mas entender que essa história nos ajuda a ver que a precariedade de nossas existências torna-se menos cinza quando sabemos que não estamos sozinh@s. Principalmente, quando nossas energias vitais estão escassas e eu preciso do outro para coisas banais como, por exemplo, limpar o suor de minha testa. E a vida no hospital é um momento-limite. O medo, a dúvida, as dores físicas escancaram a natureza da vida, bolhas de sabão, sempre prestes a estourar e desaparecer com o vento. Ter alguém para passar a mão em nossos cabelos, segurar nossa mão e, sem palavras, nos dizer: “eu estou aqui. Eu vou cuidar de você”, nos ajuda a suportar este ambiente desumanizador e feio que é o hospital. E Gerba fez isso, cuidou de sua Lili. Disse-lhe, inclusive, que era um erro a segunda cirurgia que, afinal (e infelizmente), levou-a à morte.
Sabemos do poder do outro em nossas vidas. Lili diz para sua amiga-amada: “Você me fez bonita. Agora me faz forte. Há tanto poder em você”. Mais uma vez, é o reconhecimento de que não existo sem outro. O(s) outro(s) mistura-se às minhas entranhas, me constitui. Há pessoas que nos fazem fortes, outras que se nutrem da possibilidade real ou imaginária de nossas mortes, nos vampirizam. Gestos amorosos são os glóbulos vermelhos da alma.
Minha amiga, nos seus momentos de agonia, me dizia (aliás, eu não sei se ela me dizia ou se estava pensando em voz alta) com os olhos fechando e quase murmurando: “gostaria tanto que minha mãe estivesse aqui comigo”. Era um desejo impossível. Sua mãe jamais iria cuidar daquele “filho” que desonrou a família e que foi expulso de casa aos 14 anos de idade. Sua mãe lhe queria fraca. Sua mãe lhe queria morta. Seu pai, lugar de proteção, morreu quando ela tinha nove anos. Restou-lhe suportar a lei materna sozinha, até o momento da expulsão definitiva.
Lili, poucas antes de morrer, olha para Gerba e lhe pergunta: “o que eu fiz para merecer tanto amor?” Pergunta inversa escutei de minha amiga: “o que eu fiz para minha mãe me rejeitar tanto?” Parece que nunca encontrou a resposta. A garota dinamarquesa é um filme sobre amor e como as pessoas se transformam por serem amadas.