Os objetivos desta comunicação serão discutir como a exclusão da população LGBT no Brasil é escamoteada por uma suposta democracia de fachada. O pinkwash brasileiro é feito com as letras da lei, conforme tentarei discutir mediante comparações entre a situação dos LGBTTs e a população negra. A segunda parte desta comunicação será dedicada a apresentar e caracterizar a violência contra as pessoas trans na sociedade brasileira como transfeminicídio.
A DEMOCRACIA LEGAL COMO UMA FACHADA PARA ESCONDER AS DESIGUALDADES
Um dos exercícios que gosto de fazer quando estou fora do meu país é perguntar a colegas estrangeiros o que eles sabem do Brasil. As respostas não variam muito. Entre a curiosidade e a falta de total conhecimento, é comum escutar: “O Brasil é a terra do samba, do futebol e da liberdade sexual”.
Mesmo entre meus colegas professores universitários, são os estereótipos os mapas que lhes possibilitam dissertar dois ou três minutos sobre o país do carnaval. Acredito que os estereótipos sempre têm uma conexão com a realidade que se propõem a revelar. No entanto, concordo com Stephen Worchel quando ressalta a força que os estereótipos têm na seleção que nossa memória de fatos envolvendo outras culturas e o que o nosso olhar é conduzido a enxergar. Eu diria que os estereótipos não são totalmente desconectados da realidade. O problema está em tomar uma pequena parte de contexto nacional como a verdade total, única, produzindo uma naturalização das múltiplas, conflitantes e hierarquizadas diferenças que habitam o mesmo espaço imaginário chamado nação.
Gostaria de comentar rapidamente um efeito prático das representações da ausência de conflitos no contexto brasileiro. Como vocês sabem, a questão racial marcou profundamente a humanidade na Segunda Guerra Mundial. “Raça superior”, “limpeza racial” e “eugenia” foram termos que passaram a compor uma linguagem universal em torno das questões raciais e étnicas como nunca antes visto. O Brasil era tido como um exemplo bem sucedido de convivência entre as diversas “raças”, haja vista a miscigenação estampada em nossas peles, cabelos, narizes… E foi com o objetivo de encontrar explicações mais detalhadas para a “democracia racial” brasileira, que serviria de modelo para outras culturas, que a Organização das Nações Unidas (ONU) contratou uma equipe de alto nível para fazer estas pesquisas, coordenadas pelo sociólogo Florestan Fernandes e Roger Bastite.
O resultado da pesquisa não poderia ser mais desastroso para as intenções dos financiadores: não existe democracia racial no Brasil, os negros estão excluídos do mercado de trabalho, a noção de democracia racial foi uma invenção da elite branca e não passa de uma ideologia.
Recentemente, tive uma interessante conversa sobre a representação do Brasil LGBTT com um colega de uma prestigiosa universidade americana. A ideia de que vivemos em um país que tem o dom de conviver com as diferenças de forma harmoniosa descolou-se da questão racial para outras questões, a exemplo dos LGBTT. Uma suposta cordialidade parece caracterizar as representações hegemônicas em torno das relações sociais brasileiras.
Esse colega escutava-me com olhos de profunda surpresa quando comentei que o Brasil é considerado um dos países mais perigosos do mundo para um LGBTT viver. E se um dos critérios para os Estados Unidos manterem relações diplomáticas e comerciais com os outros países tem sido cada vez mais o respeito aos direitos humanos dessa população, eu me questiono por que não há nenhuma denúncia mais explícita do que proponho chamar de LGBTTcídio no Brasil. Ou seja, não se trata “apenas” de LGBTTfobia, mas de uma ação permanente de assassinatos dessa população sem que nenhum processo jurídico seja instaurado e com pouca repercussão internacional. No entanto, conforme discutirei adiante, há consideráveis diferenças nos tipos de violência cometidas contra os LGBTT.
Sabemos da situação trágica dos LGBTT em alguns países do mundo. Sabemos que o Estado se apresenta como o principal algoz na produção da homofobia institucionalizada e que a noção de soberano, apontada por Giorgio Agamben, se anuncia com toda tramaticidade em muitos países. O Estado atua como ente que sacrifica legalmente vidas. No Brasil, o paradoxo máximo está em termos uma legislação que garante igualdade para todos, mas esse mesmo Estado é omisso na formulação de estratégias para garantir o previsto na lei.
Ao comentar com esse colega os dados de assassinatos dos LGBTT no Brasil, com olhos abertos e com grande surpresa, ele disse-me: “Mas tem alguma coisa errada. Meus amigos gays me falaram que não sofrem nenhum tipo de homofobia e são aceitos”. Eu disse-lhe: “Certamente, seus amigos são da classe média ou ricos, são brancos, estão inseridos na universidade como professores e não são femininos em suas perfomances de gênero”. Ele balançou a cabeça, concordando com minhas adivinhações.
O contexto brasileiro para os LGBTT não está desconectado de uma cultura política nacional que se caracteriza por fazer o excluído “limpar” suas marcas de diferença para ser aceito. E, mais uma vez, gostaria de fazer uma aproximação com a situação da população negra. Ainda é comum escutarmos pessoas negras afirmando que não sofrem nenhum tipo de preconceito porque elas sabem o seu lugar, elas sabem se comportar. Qual é seu lugar? Qual é o comportamento aceitável? Na tentativa de negar o racismo, o que essa afirmação revela é a profundidade e tramaticidade de uma subjetividade forjada na vergonha: ser negro é ter um lugar diferente no Brasil. É um tipo de segregação subjetiva que torna difícil o combate político, pois o excluído interiorizou essa diferenciação hierarquizada como natural.
Outro efeito desse dispositivo do medo e da vergonha seria a própria vítima, quando consegue sobreviver aos atos de violência, não denunciar o agressor, seja porque naturaliza a violência contra si (como se ela merecesse a punição, por não agir de acordo com o esperado) ou mesmo porque sabe que não adianta nada acionar o Estado, demandando justiça, via uma ação criminal.
No âmbito das vidas LGBTTs, é recorrente encontrarmos narrativas de pessoas que se sentem blindadas da violência por se comportarem de acordo com as expectativas sociais: “Sou gay, sou homem e me comporto como homem”. Ou: “Sou lésbica e não abro mão do meu lugar de mulher”.
O “reconhecimento”, tanto na questão racial quanto na dimensão das homossexualidades e dos gêneros dissidentes (transexuais e travestis), dá-se por mecanismos de apagamento das diferenças, e não pelo reconhecimento da diferença. Ou seja, acontece via assimilação. O sujeito queer, no Brasil, não se restringe exclusivamente aos LGBTT. São os que não conseguem se inserir completamente na categoria humanidade, tampouco usufruem da condição de cidadania plena estabelecida na lei.
Nos marcos das contradições que marcam o meu país, diria que sofremos de um racismo cordial e de uma LGBTTfobia cordial, na medida em que não há uma segregação legal e o “outro”, os queer que constituem a nossa nação (a população negra e os LGBTT) têm o mesmo estatuto legal que os não queer.
Talvez seja uma impossibilidade unir dois termos que não poderiam ser postos juntos: cordialidade & racismo e cordialidade & LGBTTfobia, uma vez que o racismo e a LBGTTfobia são expressões da impossibilidade de se conviver com outro. Essa impossibilidade, no entanto, se realiza no contexto brasileiro e talvez seja uma singularidade nacional em relação às outras experiências na questão racial, das homossexualidades e dos gêneros dissidentes.
Como se configura a noção de cordialidade, nos termos que estou propondo aqui? 1) Um aparato legal-jurídico que garante a todos direitos iguais:
Vejamos alguns dos efeitos da ausência de segregação racial e dos LGBTTfobia nos marcos legais:
- No âmbito do olhar do estrangeiro: o Brasil é visto como um país efetivamente democrático;
- Nas relações sociais: se há igualdade, a responsabilidade pelo fracasso recai exclusivamente nas costas do fracassado. Se há condições legais que garantem a igualdade, se todos são livres, o único responsável por não conseguir se inserir, por exemplo, no mercado de trabalho ou ingressar na universidade é o negro. Se o gay é agredido, o único responsável pela agressão é ele próprio, que deve ter feito alguma coisa errada para desencadear a fúria de outra pessoa. E no caso dos gays e lésbicas, é comum escutarmos pessoas heterossexuais afirmando que não têm nada contra “essas pessoas”, desde que elas se comportem devidamente. O que isso significa? Que não podem cometer nenhum “excesso” na demonstração de afeto (por exemplo: beijos, mãos dadas) em espaços públicos.
O efeito de um suposto país democrático é produzir apagamentos das condições econômicas, sociais e históricas que produziram determinada realidade, encontrando no indivíduo o início e fim de todas as explicações para determinadas exclusões.
Talvez seja um pouco complicado para um estrangeiro entender como um país que tem legislações tão avançadas convive, ao mesmo tempo, com níveis tão elevados de exclusão e violência cruenta. No Brasil, é comum escutarmos: “Esta lei é para inglês ver”.
Isso significa dizer que a lei não será efetivamente cumprida e existe apenas para dar uma satisfação para o mundo moderno. Ou então: “Aos amigos tudo, aos inimigos à lei”. Esse ditado popular opera com grande eficácia na distribuição de bens materiais e políticos entre os donos do poder no Brasil.
E por que as leis não são efetivamente executadas? Acho que valeria a pena pensarmos em termos de uma sociogênese do corpo jurídico nacional. Como nascem as leis? Supõe-se que a lei será um instrumento para ajudar a transformar mentalidades, quando, na verdade, a lei deveria nascer por um caminho oposto: ser a expressão de um acordo (ou contrato social), a partir de acúmulos de debate e enfrentamentos realizados na sociedade, construindo-se, assim, determinada correlação de forças favorável à aprovação e, o mais importante, à efetiva implementação da mesma. Podemos retomar aqui a ideia de consciência coletiva de Durkheim. As leis só se tornam realidade quando estão conectadas com a consciência coletiva que lhes daria sustentação. O que se acredita, no Brasil, é que as leis irão ajudar ou impulsionar a transformação de uma determinada consciência coletiva. É possível pensarmos que a aprovação de leis que criminalizam, por exemplo, o racismo, a violência contra as mulheres e a homofobia pode contribuir (talvez palidamente) para a transformação das mentalidades. Mas a lei não tem dons mágicos de produzir relações sociais baseadas no respeito e no reconhecimento das diferenças. Acredito que a sociedade brasileira tem muita fé na força transformativa das leis e tem fome de punição. O direito criminal é robusto e pune com grande rigor crimes contra as mulheres e os negros. As mulheres continuam morrendo. Os negros continuam sendo a maioria dos excluídos na estratificação social. E há uma forte pressão para a criminalização da homofobia.
2) A segunda dimensão de análise é pensarmos como se efetivam as relações entre LGBTT nas múltiplas esferas sociais. Atualmente, a sociedade brasileira vive dias de intenso debate e disputa em torno das homossexualidades, seja pelo avanço da presença de lideranças religiosas LGBTTfóbicas em instâncias de poder, seja pela presença reiterada de personagens gays nas telenovelas, nos espaços públicos, ou pelas paradas do orgulho que reúnem milhões de LGBTTs em diversas cidades brasileiras. Ou seja, o debate público sobre as homossexualidades saiu definitivamente do armário. No entanto, com essa afirmação não se pode concluir que há uma visibilidade de toda população LGBTT de forma isonômica. A população trans continua padecendo de uma invisibilidade cruel. E é sobre isso que gostaria de discutir na parte final de minha comunicação.
Para concluir, diria que o racismo cordial e a homofobia cordial caracterizam-se pela possibilidade de convivência pacífica, à medida que o outro não ouse cruzar determinadas linhas e se contente com a ficção da igualdade legal. Mas quando há a invasão de fronteiras e quando a luta se dá nos marcos do reconhecimento, detonam-se os conflitos, a exemplo do que assistimos recentemente nos debates públicos sobre as ações afirmativas para negros na universidades públicas brasileiras, feudos das elites nacionais. É como se negros estivessem invadindo a casa-grande, lugar habitado no período da escravidão pelos seus donos. E os gays e lésbicas continuarão a ser aceitos, desde que não poluam os espaços públicos com demonstração de amor e desejo, por um lado, e que se mantenham no seu gênero, por outro.
Para ler o artigo completo, acesse:
https://repositorio.ufba.br/bitstream/ri/26037/1/Transviadas-BereniceBento-2017-EDUFBA.pdf
Imagem da capa: Unsplash/Asael Peña
Natália M.
Bela reflexão!
Sou lésbica, de classe média, cisgênero e branca, e tenho certeza que não sofro tanta homofobia quanto outras lésbicas (e outros LGBTs, principalmente) que fogem da “ficção da igualdade legal”. Isso provavelmente por conta dos ambientes que frequento, das regras de etiqueta que “obrigam” a uma homofobia mais velada, limitada a olhares muitas das vezes. E digo mais, a depender do lugar que visito, eu automaticamente já sei que é melhor não chegar de mãos dadas, e nem beijar a mulher ao meu lado. Então talvez nem seja tão velada quanto eu penso essa tal da homofobia… (reflexão da reflexão gerando novas reflexões por aqui).
E quando digo “e outros LGBTs, principalmente”, é porque eu adicionaria, ainda, a essa receita da falsa democracia e a essa “cordial homofobia”, que vivencio, o fato do machismo ser tão arraigado a ponto de considerar duas mulheres juntas “bonito de se ver/legal”, mas dois homens não. Trans, então, é querer demais serem aceitos, para essas infelizes pessoas.
Para piorar, vejo que essa cordial homofobia existe inclusive entre os LGBTs (tendo sido, infelizmente, eu reconheço, parte de meus pensamentos de outrora, quando tudo ainda fazia parte da realidade paralela que eu descobria).
Mentes limitadas cometem esses tipos de erros, e o esforço para mudar e evoluir como pessoa depende, no final das contas, dos interesses próprios.
Hoje a lei existe, homofobia é crime. Mas a prática do rascismo também já era crime, inafiançável e imprescritível desde a CF/88. Ainda assim sua reflexão nos confirma que democracia racial não existe, ainda. Sigamos com fé por dias melhores.
Mas então o que pode ser feito hoje, querida autora? Como podemos continuar mudando a realidade racial e dos LGBTs no Brasil?
Berenice Bento
Obrigada pelos comentários, Natália. Acho que não há uma único resposta sobre “o que fazer”. São muitos os caminhos: a arte, a mídia, os movimentos sociais, as ONGs, os partidos políticos, os textos… Acho que não é possível pensarmos em uma “grande transformação” como um passe-de-mágica. Estamos disputando valores culturais estruturantes das subjetividades e isso, as vezes, leva tempo. Muitas vezes, sentimos que as transformaçÕes pulsam mais intensamente na esfera das micropolíticas (na relação com a família, com amigos, na sala de aula, etc). O mais importante, acredito, é sabermos que para termos um mundo de justiça social e equidade sexual e de gênero, a luta tem que ser cotidiana. Um forte abraço.