“E quando chega a hora da partida, a mãe sai com o filho ou a filha fora da raima [a tenda saaraui] e pede que fique descalce e caminhe alguns passos. De suas pegadas pinça um pouco de areia e a guarda no nó de sua melhfa [veste típica da mulher saarauia]. Quando o filho parte, ela espalhará parte desta areia pelos quatro pontos cardiais da raima e o resto deixará repousar em um cofre até a volta do filho ou da filha.”
(Limam Boisha, poeta saaraui)
Quantas vezes as mães saarauias repetiram este rito de despedida? Quantas vezes as mães viram suas filhas e filhos partirem ao longo dos 44 anos em que o povo saaraui luta para voltar para suas casas, hoje sob ocupação colonial marroquina? As histórias coloniais podem ser narradas a partir de datas e eventos reconhecidos pelo mundo. No caso saaraui, o ano 1975 é o marco. Enquanto guerrilheiros da Frente Polisário (representante política do povo saaraui) combatiam contra os colonizadores espanhóis, as Forças Armadas marroquinas se preparavam para invadir o território. “O Saara Ocidental nos pertence!”, gritavam os marroquinos. A Mauritânia também reivindicava o território como seu. É neste mesmo ano, no dia 16 de outubro, que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) de Haia declarou que o Saara Ocidental não pertencia nem ao Marrocos tampouco à Mauritânia. Esta decisão foi fundamental para o reconhecimento internacional do direito do povo saaraui ao seu território.
O rei de Marrocos, Hassan II, no entanto, não reconheceu a soberania saaraui e, com um discurso nacionalista, organizou e estimulou a invasão do Saara Ocidental, a chamada “Marcha Verde” (as aspas são para denunciar o engodo da história oficial marroquina. A “marcha” está inscrita no projeto marroquino de genocídio do povo saaraui). O exército da Frente Polisário agora tinha que combater a invasão de Marrocos ao Norte e da Mauritânia ao sul. A Mauritânia, após sucessivas derrotas, retirou-se em 1979, mas deixou sua marca de destruição, conforme veremos mais adiante.
A Espanha saiu do território, mas antes, em 14 de novembro de 1975, assinou em Madri o Acordo Tripartite, em que o ditador espanhol Francisco Franco (que morreria seis dias depois) entregava o Saara Ocidental ao Marrocos e à Mauritânia. O Acordo que vai de encontro à posição da Corte Internacional de Justiça (CIJ) de Haia e já nasceu sem nenhuma legitimidade política. Conforme se comenta, a Espanha fez uma colonização ruim e uma descolonização pior. Sobre a posição da Espanha, uma ativista espanhola da causa saaraui comentou em um encontro informal que tivemos em Sevilha: “A Espanha abandonou o povo saaraui. Abandonou… E devemos seguir sendo responsáveis por tudo que acontece com ele”. Não estou convencida de que a imagem de “abandono” seja a melhor, porque o Acordo de Madri foi uma demonstração clara de que a Espanha seguiria tendo posições privilegiadas na exploração das riquezas naturais saarauis, com destaque para a pesca, as reservas de petróleo e as minas de fosfato. No dia 27 de fevereiro de 1976, os membros da Frente Polisário proclamaram a República Árabe Saaraui Democrática (RASD).
Os saarauis, com medo da repressão marroquina, começaram a fugir de suas casas rumo ao deserto. Muitos dos que permaneceram no Saara Ocidental desapareceram e outros passaram anos nas prisões secretas do Reino de Marrocos. O cessar-fogo com Marrocos só seria assinado em 1991, depois de 15 anos de guerra.
Para frear as vitórias da Frente Polisário, o Marrocos construiu um muro de 2.200 quilômetros, o que equivale, mais ou menos, à distância entre Lisboa e Amsterdam. A cada 5 km do muro, há bases de controle militar, envolvendo 110 mil soldados. Esta imensa barreira dividiu a população do Saara Ocidental. Atualmente, uma parte está no lado ocidental e outra do lado oriental, nas Zonas Liberadas, controladas pela Frente Polisário. Enquanto isso, a população que fugiu se abrigou em uma parte do deserto pertencente à Argélia e deu início à construção dos Campos de Refugiados (vide mapa). E como os saarauis que têm familiares separados pelo muro fazem para se encontrarem? Tanto os saarauis que vivem sob a ocupação colonial marroquina quanto os que estão vivendo nos Campos de Refugiados podem passar apenas pela fronteira da Mauritânia, ao sul. Os voos são agenciados pela ONU, mas esses encontros são poucos, apenas cinco famílias por vez.
Em 1988, o Marrocos e a Frente Polisário assinaram o Settlement Plan (Plano de Ajuste), que previa, originalmente, um período de transição mediado pela ONU. Agora, a cena do conflito não era mais o da trincheira armada, mas a diplomática. Em 1991, foi criada a Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), que tinha como objetivo principal supervisionar o referendo no qual os saarauis iriam decidir pela anexação ao Reino de Marrocos ou pela organização de um Estado soberano. Inicialmente, Marrocos concordou com a realização do referendo, mas retrocedeu e continuou a avançar em sua política genocida. Já se passaram 29 anos e a MINURSO tem fracassado sucessivamente na implementação do objetivo para o qual foi criada.
O território do Saara Ocidental continua dividido e seu povo está espalhado entre a ocupação colonial marroquina, os campos de refugiados no deserto da Argélia e por vários países do mundo. Pode-se perguntar: Ora, se há um território que foi liberado pela Frente Polisário, por que os saarauis que estão nos Campos de Refugiados, em solo pertencente à Argélia, não ocupam suas terras? Porque ali, nas proximidades do muro, encontram-se cerca 10 milhões de minas subterrâneas espalhadas por Marrocos, o que a torna esta região muito perigosa para se viver (Africana Studio, 2018).
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https://www.seer.ufrgs.br/index.php/iluminuras/article/view/102531/pdf
Foto da capa: Exposição Viagem aos Campos de Refugiados Saharauis (África) – Berenice Bento