Uma estrangeira no museu


A crônica “Mausoléu-museu” publicada abaixo faz parte de “Estrangeira: uma paraíba em Nova Iorque” de Berenice Bento.

Lançamentos

João Pessoa: Dia 4 de agosto de 2016, quinta-feira, das 18:30 às 22h. Durante a 30ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia: Universidade Federal da Paraíba, Hall da Reitoria-Campus I.

São Paulo: Dia 7 de agosto de 2016, domingo, às 17:00h. Livraria Blooks, Shopping Frei Caneca – 3° piso. Rua Frei Caneca, 569.

 

Mausoléu-museu 

“Você não pode deixar de ir em tal museu!” Certamente, todos que vêm para cá já escutaram esse conselho. Museu não é para se visitar uma vez e pronto. Ver e rever uma obra de arte é sempre uma experiência nova. O Museu de História Natural figura entre os mais recomendados e visitados.

 

Visitei a primeira vez este Museu há anos e sempre volto quando minhas vizinhas pedem para acompanhá-las. Nas últimas vezes, comecei a sentir um incômodo sem nome, ao percorrer aquelas galerias cheias de cadáveres empalhados. Os olhos dos bichos que, antes, surtiam admiração em mim pelo seu realismo, passaram a ter outro sentido: acusação. Olhos de vidro, como flechas certeiras, me questionavam sobre os sentidos da relação entre natureza e cultura que este Museu instaura.

Como é possível se ter inventado uma coisa chamada museu e, ali, se expor seres como mostra da superioridade do homem? Este museu é a materialização da chamada “natureza morta” nos seus salões-necrotérios: Salão dos Povos Africanos, Salão do México e América Central, Pessoas da América do Sul, Salão de Índios das Planícies.

Em outras galerias do Mausoléu, quer dizer, museu, tem uma exposição dos nativos brasileiros. É como se eles (nós), ao sermos expostos no Museu de História Natural, fôssemos destituídos de toda cultura e nos transformássemos, exclusivamente, em natureza.

Uma natureza que existe para ser colonizada/domesticada. A antropóloga Margared Mead é apresentada como uma referência no estudo de “outras culturas”. Ela ou seus herdeiros não ousaram denunciar o monumento colonial que representa este museu? A violência epistemológica está espalhada em cada corredor. Por que ela não se negou a participar de um projeto etnocêntrico como este museu? Seria, ainda, um resquício da herança colonialista da antropologia? A antropóloga, aos 23 anos, viajou para o Pacífico Sul, onde realizou pesquisa para sua tese de doutorado, o que resultou no seu livro Coming of Age in Samoa. Ela trabalhou na Divisão de Antropologia do Museu de 1926 até 1978.

Do outro lado do Central Park está o Metropolitan Museum. Lá, encontramos obras dos gregos, de Picasso, instrumentos musicais etc. Enfim, o espaço da cultura, distante a apenas algumas milhas do espaço da natureza.

Parte considerável dos animais ali espalhados, pela técnica da taxidermia, foi morta em um safári liderado pelo ex-presidente dos EUA, Roosevelt, e pelo caçador R. J. Cunninghame, a vários países africanos, no início do século XX.Não tem narrativa ingênua. O papel dos museus em cristalizar ou perturbar determinadas concepções de humano, de belo, feio, ou seja, de verdade e de pastiche, é enorme. Os museus são monumentos produtores de verdade e os países colonizadores sabem disso. Foram e são dispositivos fundamentais na produção de uma visão etnocêntrica de mundo.

Em suas bagagens, o grupo levou toneladas de sal para preservar os couros dos animais que depois seriam a matéria-prima para fazer o empalhamento, via um sofisticado processo em que só a pele do animal é aproveitada. Um manequim de poliuretano do animal morto é vestido com o couro. Mais ou menos assim: imagine que seu corpo seja completamente esvaziado das vísceras. Depois, se faz um molde para preencher os espaços antes ocupados pelas vísceras, carnes, ossos, nervos. Ao todo, o grupo caçou e matou mais de 12.000 animais. No livro African Game Trails, Roosevelt descreveu em detalhes a aventura.

Em cada salão, a única coisa que eu vejo é uma narrativa do colonizador nos apresentando sua arrogância. E, mais uma vez, a África é assaltada. Agora, a retórica utilizada para justificar o roubo e a destruição foi dada pela ciência. Se, antes, na caça aos índios, a justificativa era extirpar o atraso das terras estadunidenses, agora, a bateria vira-se e volta-se para os animais. Em ambos os casos, o tipo de masculinidade e de desejo de poder não se altera consideravelmente.

As pessoas caminham pelas galerias do museu, tiram fotos e suspiram para expressar a profunda admiração pela fiel reconstrução dos habitats naturais. Os animais empalhados ficam expostos em vitrines gigantes que produzem um campo visual em 3D. Aqueles olhos vitrificados dos animais parecem nos acusar da histórica cumplicidade com os assassinos. O vidro, entre o mundo selvagem e nós, os turistas, tem uma finalidade para além da proteção dos cadáveres dos toques de pessoas curiosas. Os vidros servem para nos lembrar de que a natureza existe, mas que deve ser apartada das pessoas.

Alguém pode argumentar que estou exagerando, afinal, existem diferenças intransponíveis entre o mundo natural e o mundo cultural. Esse raciocínio, quase ingênuo, parece sugerir que há uma clara demarcação entre o humano e a natureza. Mesmo neste caso, é preciso reconhecer que a ideia de conferir humanidade a um corpo não é algo óbvio. Não basta ter uma suposta aparência igual para que o outro seja considerado como um parente próximo.

Então, vejamos onde termina a natureza e começa a cultura. Seriam os povos da floresta, natureza ou cultura? No sistema de reconhecimento do mundo criado pelos colonizadores, eles, e só eles, são/têm cultura, o resto é resto.

Assim, nas inúmeras galerias, encontramos dezenas de representações de povos na África, Índia, América do Sul, México. Onde estão os europeus? Onde estão os homens e mulheres brancas estadunidenses e europeias? Estarão representadas em belíssimas obras de arte no outro museu dedicado à cultura e que fica há alguns passos dali. Estão no Metropolitan Museum.

A todo o momento, eu pensava: “Sarah Baartman, presente!”. A Vênus de Hotentote, como era conhecida, chamou a atenção de europeus, bem como de cientistas, no início do século XIX, por sua pouca altura (cerca de 1.35m), suas grandes nádegas e por sua genitália. Durante anos, Sarah, de origem sul-africana, foi exposta ao público em feiras e prostíbulos.

Depois de morta, a espetacularização continuou em museus, onde sua genitália, conservada em formol, podia ser vista por quem visitasse o Museu do Homem, em Paris. E, assim, entre formol, taxidermia, poliuretano, a história da humanidade é inventada. A história não é contada, é inventada. Não existe o fato a ser narrado, como uma verdade petrificada. O que os museus fazem é inventar uma história, com ares de cientificidade, de verdade total.

Minha esperança: um dia o Museu de História Natural será lembrado como uma das mais dolorosas narrativas do homem branco e colonizador.


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