Entrevista sobre escola: (http://www.coletiva.org/index.php/entrevista/berenice-bento/)
Entrevista: Berenice Bento
A escola como um lugar de disputas e desafios.
Por Alfrancio Dias Ferreira.
Referência nos estudos de gênero no campo das ciências sociais, a socióloga Berenice Bento discute nesta entrevista à Revista Coletiva o papel da escola nas questões de identidade de gênero e sexualidade no cenário contemporâneo. Na pauta da conversa, a ideologia de gênero, que embasou a retirada das questões envolvendo gênero e diversidade sexual dos planos de educação, e os desafios para a construção da equidade de gênero e orientação sexual. Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e com dois pós-doutorados, um pela UnB e outro pela City University of New York, nos Estados Unidos, Berenice é autora dos livros A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual (Garamond/EDUFRN), O que é transexualidade (Brasiliense) e Homem não tece a dor: queixas e perplexidades masculinas (EDUFRN) e ganhadora do Prêmio Nacional de Direitos Humanos, concedido pela Presidência da República, em 2011.
Coletiva – Quais políticas de subjetivação do corpo e de gênero estão sendo inscritas no campo da educação atualmente? Que políticas de normalizações são criadas para subjetivar os corpos na escola?
Berenice Bento – Eu acho que a escola está dentro de um processo mais amplo, nos marcos das sociedades disciplinares, nos termos de Foucault, que tem como projeto a produção de corpos dóceis e disciplinados, portanto, de subjetividades capturadas. Pensar a escola como instituição disciplinar é tentar entender os mecanismos que atuam na produção das subjetividades. Essas instituições tentam capturar subjetividades. A noção de biopoder, diferentemente, irá nos ajudar a pensar a política de formação e controle da população. Mas eu acho que isso é um dos lados desse processo. E, se concordarmos com Foucault, diremos que onde tem poder tem resistência. A escola, portanto, é também um espaço de resistência e de produção incessante de fissuras. O debate em torno da inclusão das expressões “gênero”, “identidade de gênero” e “diversidade sexual” é uma demonstração clara de que a escola é um espaço de disputa, tanto intermuros, como extramuros, a exemplo das acirradas discussões que aconteceram nos parlamentos brasileiros. Internamente, as disputas acontecem todos os dias, por motivos os mais variados. É uma estudante trans que demanda o respeito à sua identidade de gênero, são estudantes que são perseguidos porque são do candomblé, as censuras e as rebeldias em torno dos cabelos crespos das pessoas negras.
A escola, ou melhor, o sistema educacional, pode ser visto como um dos múltiplos tentáculos da sociedade, voltado para a normalização das questões de gênero e das sexualidades. Não devemos pensar uma relação do tipo escola versus sociedade, como algo separado das outras instituições que compõem o que Foucault vai chamar de sociedade disciplinar. A promessa, no entanto, é que a escola (desde sua separação da religião) seja um espaço de produção de sujeitos críticos, que tenham a capacidade de ler o mundo que os cerca. Seria a educação formal o lugar onde se conquistariam referências teórico-metodológicas para se produzir leituras, mais ou menos originais, do mundo que nos cerca. Eu acho que essa promessa não é cumprida. E é, portanto, consideravelmente mentirosa. A escola era um lugar segregador dos gêneros, escolas de meninos e meninas, tudo separado. Um espaço marcado por constantes agressões físicas e simbólicas d@s professor@s((Nesta entrevista foi usada a “@” para substituir os artigos “o” e “a”, a fim de neutralizar o gênero das palavras em respeito às identidades de gênero transexuais e não-binárias.)) em relação aos estudantes, e d@s estudantes entre si. E isso tem mudado, não por conta de uma vontade singular, mas hoje estamos vendo a escola como um lugar de disputa em todas as esferas (os currículos, a carga horária, os dispositivos de controle – a chamada, as provas). Vejam, por exemplo, a ocupação das escolas pela comunidade em São Paulo. Um nível de politização e engajamento que me encheu de orgulho de ser professora. Ali, diante de nossos olhos, uma lição poderosa de participação na vida pública.
Coletiva – Nessa perspectiva, quais os limites das escolas em lidar com os sujeitos que fogem às normas de gênero, perturbando-as e rasgando-as?
Berenice Bento – A escola faz parte da sociedade. Os casos de homofobia, racismo, machismo e transfobia existentes, tudo isso faz parte da sociedade, com tudo de maravilhoso e maldito que atravessa as relações sociais extramuros da escola. Em todas as instituições sociais, não existe espaço para a existência trans. E com a escola não é diferente. A escola é um lugar muito tenso, de disputas terríveis, tal qual a família. E são essas as instituições que vão formar e fazem parte do processo de socialização primeira na constituição do sujeito. Os primeiros vínculos acontecem na família e na escola, lugares em que se aprende, ainda muito cedo, a importância de se comportar de acordo com as expectativas sociais. Na escola, também se aprende que existe uma coisa chamada hierarquia, que as diferenças não são toleradas e são tratadas com violência. Um colaborador de pesquisa me disse que, até os nove anos de idade, não tinha muito clara a diferença entre menina e menino. Já nos primeiros dias de escola, escutei alguém o chamando de “viadinho”. Cada um de nós tem determinados repertórios biográficos em relação a estas duas instituições. No entanto, ao longo dos meus anos como pesquisadora e professora, concluo que a escola tem se mostrado historicamente como uma instituição do fracasso em lidar com as homossexualidades, as bissexualidades, as travestilidades, as transexualidades. A tese de doutorado de Luma Nogueira de Andrade (Travestis na escola: assujeitamento e resistência à ordem normativa) e de Maria Leuça Teixeira Duarte (Escola: lugar político da diversidade sexual e de gênero) mostra as engrenagens da escola funcionando para fazer os chamados “dissidentes de gênero e sexual” abandonarem suas fileiras. Acontece que as motivações deste abandono não estão nas estatísticas assépticas de “evasão escolar”. Não é “evasão”, é expulsão, próximo à que assistimos em Tropa de Elite quando o capitão faz de tudo para o cadete pedir para sair. O “pede para sair” é uma força ainda mais terrível que joga nos ombros dos estudantes a responsabilidade por seu “fracasso”. O seu suposto fracasso serve para esconder o horror que acontece dentro dos muros da escola.
Coletiva – O campo da educação também pode ser um campo de desaprendizagens da regulação normativa de gênero, a partir de inserção, permanência e fricções que pessoas transexuais realizam?
Berenice Bento – Acho sim, até porque há microrresistências, mas que têm uma considerável potência. A vida não acontece na esfera macro. A vida acontece na sala de aula, nos restaurantes universitários, nos banheiros escolares. Por exemplo, a norma que estabelece a utilização do nome social nas universidades. Embora saibamos que isso é uma “gambiarra legal”, também sabemos que as gambiarras têm sua funcionalidade. Resolvem um problema de caráter emergencial. Estamos lutando para que a lei de identidade de gênero seja aprovada no congresso, mas sabemos da composição do parlamento. No atual mandato, não vamos conseguir nada. Enquanto isso, o que fazemos? @s estudantes trans precisam estudar e ter um ambiente escolar de respeito. Daí a importância da aprovação do nome social no sistema educacional. Isso não é pouco, em vários aspectos. Primeiro, a pessoa vai ficar no ambiente universitário por, no mínimo, quatro anos. Ela terá paz. Não terá que negociar com cada professor, a cada semestre, sua identidade de gênero. Depois de quatro, cinco anos ela terá uma carreira e melhores condições de se inserir no mercado de trabalho. Usar o nome social também contribui para o processo jurídico. Quando essa pessoa for solicitar mudança de nome e sexo no judiciário, terá como argumento o uso do nome social na universidade. Veja, é uma micropolítica, não é uma norma geral. É local. E, de repente, alguém olha para ele ou para ela e se pergunta: “Uma travesti na sala de aula, minha colega de sala?” Isso sim, tem uma potência de mudar as mentalidades e a cultura. Muitas colegas ativistas e acadêmicos defendem a necessidade de leis gerais para tudo, a exemplo do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a criminalização da homofobia e a lei do feminicídio. A lei é importante, mas não tem a capacidade de dizer: agora, todos nós não somos racistas, somos respeitosos com as diferenças. Eu também não sei exatamente o alcance simbólico da lei em um país na qual as instituições formais vivem uma crise de legitimidade profunda.
Coletiva – No que se refere à inclusão das temáticas de gênero e diversidade sexual nos currículos escolares, a partir de suas experiências de pesquisas quais questões têm sido discutidas? Quais posturas estão sendo assumidas? Existem silenciamentos? Qual(ais) posturas são assumidas pela escola?
Berenice Bento – Não existe inclusão. Há cursos financiados pelo Ministério da Educação (MEC), a exemplo do curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE). Mas nós estamos lidando com algo mais profundo. Acho que deveríamos ter muitas outras experiências. Os relatos e os desafios dos professores e professoras são gigantescos. Cito um relato que escutei em um dos cursos de formação em gênero que participei. A merenda escolar era servida em pratinhos cor rosa e azul. Quando chegou a hora de um menino comer, não tinha mais prato azul, apenas o rosa. Ele se negou a comer porque rosa era “a cor das meninas”. Minha pergunta: por que a secretaria de educação daquele município não comprou todos os pratos brancos ou amarelos? Se a professora tivesse um mínimo de discussão sobre gênero, iria problematizar essa relação (rosa = menina, azul = menino). O que ela fez? Esperou um prato azul para seu estudante. Todos os dias somos confrontados em nossos cotidianos com questões como essas. Outro relato: um aluno de 14 anos que queria ser chamado de Lana. A professora me perguntou: “O que eu faço?” Eu respondi: “Respeite sua aluna. Chame-a pelo nome pelo qual ela quer ser reconhecida. Isso irá garantir que ela tenha um ambiente escolar melhor, de conforto psíquico para que ela estude, garanta que ela fique na sala de aula, protege-a”. Além dos conteúdos, devemos saber que ser professor@ exige uma posição ética intransigente de defesa d@s noss@s estudantes. Nada é mais triste do que ver um@ estudante não voltar para sala de aula. Não basta balançar os ombros e pensar: isso não é problema meu.
O GDE, somado aos ativismos, cada vez mais potentes no Brasil, ajudam a questionar que escola é essa. Mas ainda é pouco. A questão de gênero é transversal, ou seja, gênero e sexualidade são temas que devem compor a formação de uma profissional, seja de que a área for. Por exemplo, médic@s e enfermeir@s terão que lidar com uma mulher trans no hospital. Essa mulher trans vai precisar de um curativo porque ela acabou de passar por uma cirurgia de transgenitalização. Como lidar com esse corpo sendo que a enfermeira ou o enfermeiro, não parou para pensar sobre os corpos para além da dicotomia homem-pênis, mulher-vagina? Esses são exemplos que apontam para a necessidade de pautar essa discussão de forma permanente no espaço educacional. Um juiz terá que se posicionar diante da demanda dessa mesma mulher pela mudança do nome e sexo nos documentos. Esse corpo irá transitar por várias esferas constitutivas do poder baseado no saber. O que nós temos assistido é uma ignorância profunda dos operadores da medicina e dos operadores do direito em relação aos corpos dissidentes de gênero. São os movimentos sociais que os têm ajudado a superar essa ignorância.
Coletiva – O eixo VI do relatório da Conferência Nacional de Educação (CONAE), de 2010, sugeriu que a discussão de gênero e diversidade sexual passasse a fazer parte da política de valorização e formação inicial e continuada dos professores, ser inserida no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), nos currículos de licenciatura, no currículo da educação básica, dentre outras recomendações. A partir das discussões de aprovação no Congresso Nacional do Plano Nacional de Educação (2014-2024) pautadas no conservadorismo e fundamentalismo, as expressões “gênero” e “diversidade sexual” foram suprimidas, dando início ao movimento “Ideologia de Gênero”, que embasou também a retirada das questões de gênero e diversidade sexual dos planos nacional, estaduais e municipais de educação. Em sua opinião, qual o impacto desse discurso para a escola?
Berenice Bento – Essa pergunta é interessante, mas eu não sei te responder em uma única direção. Eu acho que esse discurso tem efeitos rizomáticos. Não terá apenas um efeito, causa e consequência. Têm efeitos interessantes e positivos na perspectiva transformativa e efeitos de recrudescimento. O que parece que se tornou claro agora, era o já sabido por nós: gênero é uma categoria política. Não é uma categoria biomédica, diagnóstica, como ainda insiste a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM-5. Quando os parlamentares denunciam uma suposta “ideologia de gênero”, na verdade eles estão colocando em cena uma teoria de gênero já bastante conhecida de todos nós e que diz que a anatomia é o destino. Estamos disputando teorias de gênero, e não ideologias. Ideologia é um conceito cunhado pelo socialista Karl Marx e que tem como objetivo entender como as classes sociais produzem posições de poder a partir da complexa relação entre infraestrutura (base econômica) e superestrutura (esfera das instituições sociais). A “teoria” defendida pelos parlamentares abre espaço para disputas, uma vez que aquilo que já estava nos livros de biologia como verdade inquestionável (homem = masculinidade = pênis e mulher = femininlidade = vagina) precisa ser transformado em discurso político e anunciar-se como verdade no espaço público. Isso é bom porque abre espaço para uma discussão que antes inexistia. Contraditoriamente, ao trazer esse debate para a esfera pública, os parlamentares, que queriam manter o gênero atrelado à biologia, tiveram que tirá-lo de lá para o mundo da política. Parte considerável do pensamento hegemônico da medicina está assentada na pressuposição de que os corpos são dismórficos e ser homem ou mulher é uma expressão da diferença natural dos corpos. Aqui, religião, ciência e medicina parecem que não estão em contradição. O que notamos foi um discurso dito científico da medicina “invadindo” o parlamento e sendo transformado em político propriamente dito. Político no sentido de um determinado grupo de interesse que estabelece uma posição de interesse em torno de um debate público. Quais são os efeitos positivos disso? O mais profundo, acredito, é exatamente o não desejado pelos parlamentares: demonstrar que há teorias diferentes para explicar os sentidos para as masculinidades e feminilidades. O segundo, diz respeito à mobilização que aconteceu. O que eu vi na Câmara de Vereadores de Natal foi uma disputa aberta em torno das sexualidades e dos gêneros. Do nosso lado, conseguimos unificar um campo de luta (feministas, transfeministas, ativistas gays e lésbicas, estudantes) que, geralmente, está isolado ou disputa entre si. Várias concepções sobre feminismo estavam unificadas na luta em torno da manutenção do gênero e da diversidade sexual no plano de educação do município. Fomos derrotados, mas isso não significa que não continuaremos com nossas atividades acadêmicas e de ativista. Uma colega lamentava dizendo que a não inclusão significava a retirada de recursos para o financiamento de projetos com o recorte de gênero. Mas, concretamente, nós tínhamos recursos? Quais recursos nós temos? Sempre vivemos em um deserto orçamentário para nossos temas. Já estamos acostumados a fazer milagres com a escassez de recursos. Eu tenho certeza que os núcleos de estudos de pesquisas de gênero nas universidades que ofertam cursos e palestras não irão parar suas atividades, que continuaremos com nossos projetos de extensão, seminários, parcerias entre universidade e movimentos sociais. Mas há um dado interessante: na mesma semana em que tivemos a rejeição da inclusão desses temas no Plano Municipal de Educação, uma alteração da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), foi aprovada no Senado. Acrescentou-se um inciso que afirma a necessidade de políticas públicas que visem a “promover ambiente escolar seguro, adotando estratégias de prevenção e combate a práticas de intimidação e agressão recorrentes entre os integrantes da comunidade escolar, conhecidas como bullying”. Na justificativa do projeto, pode-se ler: “Os efeitos do bullying são deletérios, causando enorme sofrimento às vítimas. Isso é ainda mais grave quando se trata de bullying nas escolas, por afetar indivíduos de tenra idade, cuja personalidade e sociabilidade estão em desenvolvimento. Além disso, a vulnerabilidade das vítimas costuma ser acentuada pelo fato de apresentarem alguma característica que as tornam “diferentes” da maioria dos alunos – justamente o que as faz alvos preferenciais dos praticantes do bullying”. Ou seja, o legislador entra em pânico com a palavra “gênero”, mas propõe políticas para proteção dos “diferentes”. Quem são esses “diferentes”? Ou seja, a LDB nos assegura agora realizar todos os tipos de trabalhos acadêmico-pedagógicos para promoção da equidade de gênero, sexual e racial em todo sistema de educação.
Coletiva – Em tempos adversos, quais os desafios curriculares e pedagógicos para a construção da equidade de gênero e orientação sexual?
Berenice Bento – Isso que a gente faz: eventos, produção de artigos, aproximar-se dos movimentos sociais, incluir autor@s feministas nos programas de nossas disciplinas. São múltiplas ações. Eu não acho que uma política pública desenvolvida de cima para baixo tenha a capacidade de alterar normas sociais e modificar subjetividades. Porque quando falamos de subjetividade, estamos lidando com um material poroso, plástico. Subjetividade é a forma como as pessoas leem o mundo e organizam suas leituras; então, mudar essas leituras e (des)organizar subjetividades são processos mais invisíveis e escorregadios. Por exemplo, o beijo gay na novela. Acho que conseguimos construir um debate em torno de visibilizar a carícia, politizar o afeto. Era importante para que as pessoas pudessem andar nas ruas de mãos dadas. Hegemonicamente, o que temos visto é que o discurso do ativismo está muito arraigado pela penalização via direito penal, e isso vale tanto para o movimento gay e lésbico quanto para o movimento feminista. O Brasil tem a quarta maior população carcerária no mundo. Sem dúvida, é fundamental criminalizar quem mata travestis, transexuais, homossexuais, as mulheres, mas será que não há soluções mais criativas e que apostem na capacidade do sujeito voltar ao convívio social sem a marca estigmatizante de ser um ex-presidiário para outros casos de agressão? Será que não podemos pensar em penas alternativas? Não seria essa nossa obsessão pelo direito penal, essa demanda por justiça via direito repressivo uma continuidade das mentalidades do senhor escravocrata? O debate sobre quais os caminhos mais eficazes para mudar mentalidades e culturas é intenso. Todos os anos, cerca de 200 estudantes cursam minhas disciplinas. Tenho plena consciência do poder que tenho ao montar o programa da disciplina. Aí eu penso: vamos estudar o feminismo, o transfeminismo, discutir gênero para além do biológico, quais autores e autoras trans estarão na bibliografia do meu curso. O programa de um curso é um ato de poder extraordinário, em todos os campos do conhecimento. É um pouco aquela história: diga-me quem tu citas e eu te direi como pensas. As pessoas lerão, verão depoimentos, assistirão documentários. Logo depois, elas serão médic@s, enfermeir@s, pesquisador@s, professor@s. É no cotidiano que as subjetividades são forjadas e não há nada mais trágico para a agência humana quando se tem vergonha daquilo que se é ou vergonha daquilo que se deseja ser. Eu me lembro de uma fala muito poderosa da Luma de Andrade Nogueira, a quem eu havia me referido no início da nossa entrevista. Ela disse: “Eu chegava nas escolas para dar aulas e, no primeiro dia de aula do semestre, as pessoas me olhavam com estranhamento. Uma mulher de quase dois metros, mãozona, uma voz que não é lá muito feminina. No primeiro dia de aula, eu já dizia: ‘Gente, sou travesti’”. Veja, ela faz nesse momento uma política de quebrar a coluna vertebral do insulto. Quem vai insultá-la de travesti? Mas ela já positivou o aparente insulto como elemento constitutivo de sua identidade. A vergonha transformou-se em orgulho. E, nesse momento, ela se tornou mais livre porque perdeu o medo, para lembrar a frase da cantora norte-americana Nina Simone: “Liberdade é não ter medo”.
Para saber mais:
BENTO, Berenice. Ignorância é força. Transviad@s: sexualidade, gênero e direitos humanos. Revista Cult. São Paulo, Editora Bregantini. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2016/03/ignorancia-e-forca/>. Acesso em: 29 jun. 2016.