Por Berenice Bento
17 de fevereiro de 2016
(https://revistacult.uol.com.br/home/chave-do-poder/)
Para Leilane Assunção
Um dia banal de aula. A professora chega ao campus universitário e vai até o setor administrativo da universidade. Pede a uma funcionária para abrir a sala de aula. Retira-se e fica esperando com seus estudantes diante da sala. O tempo passa, o calor aumenta. A professora dirige-se novamente para o setor. No meio do caminho, se encontra com a funcionária responsável e pergunta o porquê da demora. Não havia demora, mas intencionalidade. A funcionária lhe comunica que não irá abrir a sala porque não sabe se ela, a professora, era quem dizia ser. A presença dos estudantes não seria “uma prova” suficiente de que ela era professora?
Nenhum professor ou professora nesta instituição precisa mostrar a identidade para pegar a chave, tampouco necessita do testemunho dos estudantes. Sou professora desta instituição. Em mais de cinco anos ali lecionando, nunca nenhum funcionário me fez tal exigência. Para manter o clima de cordialidade no espaço universitário, imagina-se que ninguém irá mentir sobre o vínculo com a instituição.
Quando a funcionária diz que não entregará a chave, ela assume para si o poder de Estado. Decidiu, unilateralmente, quem poderá ter acesso ou não às salas. Nestas microrrelações, podemos notar que o Estado não está em um lugar distante, povoado de gente desconhecida, mas, aqui, nas interações banais do cotidiano, conforme proposto por Foucault. Não existe “o” poder, mas relações de poder materializadas em práticas que visam à obtenção de melhores posições. Procedimentos burocráticos, como, por exemplo, as chamadas escolares, a definição de mecanismos de controle para entrega da chave, os prontuários médicos, os processos jurídicos, revelam-nos a capilaridade do poder. O poder do Estado não está exclusivamente na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Para o preso, é o dono da chave da cela, o carcereiro, quem tem o poder.
Quando a funcionária disse: “não tenho certeza se você é quem diz que é”, ela termina por instituir um lugar de poder que deslegitimava a existência da professora. Acontece que a professora em questão já vem de uma longa luta pelo reconhecimento. Ela conhece, em suas entranhas, o funcionamento das instituições sociais. Diferente do paralisado homem diante da lei, de Kafka, a professora Leilane Assunção entrou em espaços proibidos, negou o poder da lei em negar sua existência. Para se tornar uma professora doutora, ela, uma mulher trans, precisou arrombar muitas portas. Fechavam-na. Ela batia. Não respondia. Ela continuava a bater. O silêncio se fazia. Ela forçava a entrada. Como explicar que uma mulher trans tenha conseguido se tornar doutora e professora de uma universidade pública? O nome disso é resistência. São narrativas existenciais como essas que nos fornecem alimento para continuar nas disputas cotidianas.
Nesta mesma universidade, a professora Leilane teve que enfrentar a fúria de outro funcionário que lhe negou autorização para usar o banheiro feminino, ameaçando-lhe separar seu corpo de sua cabeça, caso ela continuasse a insistir naquele despropósito: fazer xixi no banheiro feminino. Nesta mesma universidade há uma norma que assegura o nome social para as pessoas trans. No entanto, por “problemas no sistema”, todos os semestres Leilane se vê exposta ao constrangimento de ter seu nome de batismo exibido nas páginas internas da universidade. Erro do sistema ou erro no sistema? Sem dúvida, o sistema erra reiteradamente para garantir o acerto fundamental: deixar tudo como está.
Naquela tarde de sol natalense, a dona das chaves lhe dizia que ela fosse para casa e não ousasse poluir o santificado (e bolorento) espaço acadêmico. Leilane não pertencia àquele lugar. Naquele dia não teve aula. Os alunos voltaram para casa. E ali se iniciava mais um momento de luta na vida da professora Leilane. Mais uma porta precisava ser aberta. Agora, ela não está sozinha. Somos muitas Leilanes.