Por Berenice Bento
(https://revistacult.uol.com.br/home/ignorancia-e-forca/)
Conforme eu me aproximava da Câmara de Vereadores da cidade de Natal, o som que se espalhava por vários quarteirões do bairro ficava mais nítido. Diante da sede do poder legislativo local, feministas, transfeministas, ativistas LGBTs e estudantes denunciavam, em um pequeno carro de som, o que estava prestes a acontecer lá dentro. Como uma citação de uma cena já conhecida em várias partes do Brasil, seria votado, naquela tarde, o Plano Municipal de Educação, e, já sabíamos (por debates anteriores e pela correlação de forças) que a meta que previa formação de professores nos temas de gênero, diversidade e orientação sexual seria retirada daquele Plano.
Quais os argumentos foram acionados para não garantir aos/às professores/professoras o direito à formação em temas fundamentais para lidar com questões que atravessam o cotidiano escolar? Para somar-se aos/às vereadores/vereadoras de Campinas que votaram uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir, escutamos acusações de que Karl Marx era o responsável por ter criado a perigosa teoria segundo a qual crianças devem ser educadas sem gênero. A “ideologia de gênero”, afirmavam, teve pai e data de nascimento: Karl Marx, por volta dos anos de 1886! A “ideologia de gênero” faria parte de um campo mais amplo de teorias, o “marxismo cultural”, e que teria como objetivo destruir a família tradicional. Faltou apenas, para a certidão de nascimento ficar completa, dizer quem foi a mãe.
Por onde começar o diálogo? Uma vereadora reclamava que os ruídos que brotavam das galerias não permitiam que se instalasse ali um bom debate. O “bom diálogo” não estava prejudicado por esta razão, mas pela impossibilidade de se estabelecer um núcleo comum para se iniciar a conversa. Este núcleo comum deveria ser o Plano de Educação. Ou seja, o confronto de ideias seria estruturado a partir do que estava sendo proposto naquele documento. Embora não houvesse uma única linha que mencionasse “educação sexual para as crianças”, “banheiros sem gênero”, “educação sem gênero”, foi em torno destes tropos que vereadores/vereadoras se posicionaram contrários ao Plano. Para o sociólogo Max Weber, as relações sociais são estruturadas quando se compartilham intencionalidades de ações. Ali, portanto, não tinha como se compartilhar nada. O ruído, a ininteligibilidade não vinha das palavras de ordem dos manifestantes, e, sim, dos/das vereadores/vereadoras que negavam à escola a realização de sua promessa histórica: ser um espaço onde a dúvida e a criticidade não sejam silenciadas por medo de ferir dogmas religiosos. Ali, a ignorância em estado puro podia ser ouvida e vista.
Embora sejam quase risíveis as falas dos/das parlamentares quando evocavam e inventavam uma teoria e um pai, a imprensa local noticiou o debate sem aspear “ideologia de gênero”, sem ao menos fazer um box para explicar para a sociedade o que significa gênero, identidade e orientação sexual. E, ao fazer isso, transformou em verdade, em força, a ignorância que ecoou naquela tarde. E qual a força que faz o poder da ignorância cessar? A liberdade da crítica, da dúvida, enfim, seria a escola o lugar idealizado para esta liberdade se efetivar, embora saibamos que esta instituição tem cumprido historicamente antes o trabalho de reprodução dos estereótipos de gênero, sexualidade e raça/etnia. Embora saibamos que, historicamente, a escola seja reconhecida como um lugar de (re) produção de estigmas; também é ali um lugar de enfrentamentos, de fugas, da micropolítica. E o debate daquela tarde deixou esta disputa explícita.
Em Oceania, a cidade imaginária criada por George Orwell, no livro 1984, o partido tinha três princípios que fundavam seu poder: Guerra é paz; Liberdade é escravidão; Ignorância é força. Com estes princípios, o partido (ou Grande Irmão, Big Brother), produzia medos, estatísticas falsas, desaparecia com pessoas dos registros, inventava a história, criava memória e apagava outras. Foi a força da ignorância que venceu aquela votação. Naquele espetáculo tragicômico, Eugène Ionesco teria um belo laboratório para fazer seu teatro do absurdo. A ignorância, a recusa à dúvida, a abertura para o mundo venceram. O que assistimos naquela tarde foi a um corpo político formado por vereadores/vereadoras ignorantes que têm poder e faz de sua própria ignorância o conteúdo último do seu poder. Tudo em nome de Deus. E, ali, descobrimos que a Oceania pode estar aqui.
Certamente a ignorância, esta negação ao pensamento, o medo de pensar o pensamento, o prazer pela repetição da repetição e, por fim, a recusa a qualquer autenticidade está em todos os lugares. No entanto, quando o/a ignorante tem poder para decidir os rumos da educação de uma coletividade por vários anos, neste momento, não resta outra alternativa aos seres com “presença no mundo” (Paulo Freire) que desobedecer, negar qualquer legitimidade a este poder. Portanto, vamos continuar fazendo nossos cursos e debates sobre diversidade sexual, gênero, orientação sexual e nos mobilizando em múltiplas frentes para transformarmos as estruturas hierárquicas e assimétricas dos gêneros e das sexualidades.
Quando eu saí da Câmara, conversei com uma ativista travesti, a mesma que escutei quando me aproximava do local, horas antes. Com os olhos cheios d’água, ela desabafava: “Hoje uma amiga travesti foi agredida na escola. Ela tem apenas 16 anos. Todos os dias isso acontece. O que eles querem? Eles querem que a gente morra. Mas não vamos, não. Os professores precisam de formação nesses temas.”
Fui para casa atravessada pela imagem potente daquela ativista. Ela é o pesadelo daqueles parlamentares ignorantes. Ela estava no espaço público, durante o dia, gritando sua existência. E com sua “presença no mundo” nos ensina que o antônimo de ignorância não é erudição, instrução, ilustração, mas disposição ativa para transformação do mundo.