Somos, diariamente, postos em contato com histórias de mulheres que educam seus/suas filhos/as sozinhas, de pais que lutam na justiça pela guarda dos filhos/as, de casais de homens que conseguem adotar filhos/as, além de conseguirem colocar o nome dos dois parceiros na certidão de nascimento das crianças, desaparecendo a referência à “mãe”. Conclusão imediata: a família brasileira está mudando. Embora haja uma idealização de que há uma única forma de organização familiar, a nuclear, composta pelo pai, pela mãe e os/as filhos/as, essa estrutura de família tem convivido, historicamente, com outras configurações familiares (Corrêa, 1982) e, nas últimas décadas, as transformações têm sido mais intensas e midiáticas. A família nuclear é apenas uma, entre tantas outras possibilidades de se organizar a família.
A idealização da família com divisões binárias das tarefas a partir das diferenças sexuais (ao homem a rua, à mulher o lar), a imagem do lar como espaço de conforto espiritual, lócus interdito aos conflitos e às disputas, são idílicos que guardam pouca conexão com a realidade e que têm como função restringir a noção de família aos marcos da heterossexualidade.
Outra imagem recorrente constrói a família como a materialização da soberania da natureza: um homem e uma mulher, dando continuidade à espécie. A complementaridade perfeita. Seria na heterossexualidade que essa instituição encontraria sua coerência e unidade. O questionamento da heterossexualidade como única possibilidade dos sujeitos viverem suas sexualidades e a despatologização das homossexualidades tiveram desdobramentos na concepção de família. O que está em jogo é uma disputa sobre as concepções de família. É interessante notar que essa disputa, de forma enviesada, termina por reforçar a família como “um valor” e completa por empobrecer outras possibilidades de se construir relações afetivo- -sexuais que não estejam normatizadas pelo princípio da família (herança, parentalidade e fidelidade).
Os objetivos deste artigo são: 1) problematizar a ideia de que a família é o lugar da proteção e do cuidado. Para isso, lanço mão de uma aproximação com partes do Velho Testamento, um dos livros fundantes do mito da família como instituição sagrada. As partes selecionadas serão lidas com ajuda de Clarice Lispector e atualizo uma de suas formulações mais densas: tornar-se humano é antes de tudo duvidar da verdade estabelecida. E uma das verdades primeiras a que somos inculcados diz respeito à sacralidade da família heterossexual e consanguínea. 2) Apresentar uma reflexão sobre teorias que tentam analisar como nos tornamos o que somos e que conferem centralidade explicativa à socialização primária e à família. Tentarei argumentar que, ao longo de nossas trajetórias, somos postos diante de múltiplos habitus e instituições sociais. Sem negar a importância da família na formação das subjetividades, relativizo sua força como variável independente ao longo das trajetórias dos sujeitos. E, por fim, 3) retomar a preocupação central deste artigo que se refere à discussão sobre a pluralidade e plasticidade da categoria “família” e, por outro lado, apontar as disputas que estão em curso entre uma visão tradicional de família e outra que enfatiza a autonomia do sujeito. Nessa parte, dialogarei com algumas pesquisas que apresentam novas configurações familiares entre travestis e transexuais.
Este artigo é resultado de pesquisas que venho desenvolvendo sobre relações de gênero e sexualidade. Em minha dissertação de mestrado, que teve como tema as masculinidades (Bento, 1998), as narrativas dos homens entrevistados apontaram que os valores herdados da família de origem eram postos em xeque mediante diversas terapias psicológicas. Com muita dor e solidão esses homens estavam em processo de intensa reorganização de suas subjetividades e buscavam reconstruir suas relações amorosas e afetivas com base em princípios da ideologia do individualismo (Dumont, 1985). Ao longo de três anos (2001-2003), fiz trabalho de campo etnografando a vida de pessoas transexuais (Bento, 2006). Mágoa, tristeza, abandono, solidão: esses são os sentimentos recorrentes das pessoas transexuais que contribuíram para minha tese de doutorado. A família de origem também se apresentou em suas memórias como uma promessa de cuidado não cumprida. Este artigo, portanto, se estrutura na revisão de notas de trabalho de campo, pesquisa que venho efetivando nos últimos anos e, ao mesmo tempo, resulta da interlocução com outras etnografias realizadas com e sobre travestis e transexuais. Metodologicamente, utilizo a análise do discurso (Foucault 1996), para interpretar os textos, sejam as fontes secundárias ou primárias.
Para ler o artigo completo, acesse:
https://www.redalyc.org/pdf/703/70325252004.pdf
Imagem da capa: A Família, 1925 – Tarsila do Amaral.