É inegável a força que determinados corpos teóricos desempenham na produção de novos sujeitos coletivos. A estreita relação entre teoria e prática não se limita àqueles que negam a neutralidade científica. Durkheim, considerado o fundador da Sociologia, talvez tenha sido, dentro os sociólogos clássicos, o que mais estava atento aos acontecimentos de sua época. Sua importância em todo o processo de reformulação do ensino francês é um dos seus engajamentos na vida social francesa. Há dois aspectos do pensamento deste autor que merecem destaque: 1) Por um lado, foi um pensador da ordem (Aron, 2002) e termos como “desintegração social”, “falta de coesão” nos relevam que a mudança só teve lugar em sua obra como algo “anômico”, prejudicial à solidariedade social. 2) Ao mesmo tempo, Durkheim realizou uma disputa epistemológica com outros campos do saber ao afirmar que há determinadas ocorrências na vida social que apenas a Sociologia teria condições de propor explicações eficientes.
Na Divisão Social do Trabalho (2004) ele irá disputar com os economistas os significados em torno da função da divisão social do trabalho. Onde se via relações puramente mercantis, competitivas e individualistas, Durkheim encontrou elementos fundamentais para manutenção da integração social, pois quanto maior a divisão social do trabalho, afirmava o autor, maior seria o nível de dependência social. Também não podemos esquecer o seu fôlego de polemista ao afirmar que temas pertencentes exclusivamente à Psicologia, como o suicídio, deveriam ser objeto de estudo da Sociologia.
Em O Suicídio (2008) vemos um pensador “invadir” os limites disciplinares de outras áreas. A Psicologia até então tinha o domínio explicativo exclusivo para as motivações que levam um sujeito a tirar a própria vida. Durkheim nos dirá que sob o rótulo geral de “suicídio” escondem-se causas diversas. A partir daí nos apresentará uma fascinante tipologia: suicídio altruísta, suicídio egoísta e suicídio anômico. O ponto de partida para construção de cada tipo não será a consciência individual, mas o meio social, pois seria aí onde estariam as explicações que levam o sujeito a cometer este ato extremo.
Começo este artigo com o exemplo do Durkheim, um autor que pouco inspira os estudos transviados, porque enxergo em sua ação de pesquisador uma fonte de estímulo para a prática científica. A disputa que os estudos transviados estão realizando com outros saberes instituídos em torno das sexualidades, gêneros e dimensões raciais, tem como efeito invadir áreas do conhecimento antes tidas como as verdadeiras porta-vozes de determinadas esferas da vida. O processo de desnaturalização das identidades de gênero e das práticas sexuais que está em curso realiza-se mediante pesquisas histórias e conjunturais a partir de múltiplos recortes temáticos e de técnicas de pesquisa.
Nos estudos transviados os discursos médicos passam a ser analisados como engrenagens discursivas que limitam a existência da diversidade dos desejos, dos gêneros, das sexualidades ao âmbito das estruturas fixas corpóreas. E assim se estabelece uma disputa epistemológica onde o corpo passa a ser um significante com múltiplos significados, uma estrutura estruturante em permanente processo de transformação.
Os cromossomos, hormônios, estruturas cerebrais, “diferenças naturais” entre homens e mulheres, são inseridos em contextos sociais e políticos onde a própria noção de corpo natural é posta em suspeição. Questões como: O que diferencia o homem da mulher? São recolocadas em outros termos: O que é um homem e uma mulher? Para que serve este lugar de gênero? Só é mulher quem tem um útero?
A emergência de um saber em torno das existências trans começou a se articular em meados do século XX. Nesse momento, aconteceu algo similar ao que ocorrera com a sexualidade no século XIX: uma voracidade do saber médico/psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise) em construir protocolos e produzir diagnósticos diferenciais da transexualidade em relação às homossexualidades. O processo de estruturação daquilo que eu nomeei de “dispositivo da transexualidade” (Bento, 2014) representou a transformação de uma determinada ideologia de gênero em verdade científica. Nada do que se inscreveu sobre os trânsitos entre os gêneros no âmbito patologizante da clínica tinha ou tem uma gota de neutralidade científica. São valores morais e religiosos transfigurados em verdades científicas.
Para problematizar o dispositivo da transexualidade foi necessária a organização das pessoas trans como sujeitos coletivos, com voz e força política e, ao mesmo tempo, a produção de outro corpo teórico que fosse capaz de se contrapor à suposta verdade científica que fundamentava a patologização. Um novo corpo conceitual foi acionado para interpretar dimensões da vida tidas como imutáveis, ahistóricas: performance, heteronormatividade, normas de gênero, paródia de gênero5, dispositivo da transexualidade, heteroTerrorismo (2012).
Nos últimos anos as minhas pesquisas estão voltadas para as dimensões de gênero e sua centralidade na sustentação do projeto de ser humano (2014a) que o Estado aciona para distribuir bens materiais e simbólicos. Retomarei aqui a discussão entre real e fictício, uma vez que a negação da possibilidade de conferir humanidade aos sujeitos que vivem as masculinidades e as feminilidades para além dos marcadores biológicos (pênis/vagina/seios/testosterona/cromossomos) tem na naturalização das identidades o elemento discursivo fundamental.
A noção de humanidade que nos constitui requer a categoria de gêneros e este só é reconhecível, só ganha vida e adquire inteligibilidade, segundo as normas de gênero, em corpos-homens e corpos-mulheres. Ou seja, a reivindicação última das pessoas trans é pelo reconhecimento social de sua condição humana.
Um corpo teórico pode ser lido como uma máquina de guerra. Os conceitos, suas articulações, a relação com os colaboradores da pesquisa, são ferramentas que permitem ao/à pesquisador/a propor interpretações sobre as dimensões das relações sociais sobre a qual está debruçada. Durante décadas a única referência que se dispunha para explicar os trânsitos entre os gêneros eram os construtos disponibilizados pela saber-poder médico/psi. A adesão de ativistas e acadêmicos a uma perspectiva analítica contrária à naturalização das identidades, aos binarismos identitários e à análise da economia política dos discursos médicos/psi passaram a estabelecer novas possibilidades interpretativas. O pano de fundo destas disputas, conforme discutirei, está na relação entre natureza e cultura.
Para ler o artigo na íntegra, acesse:
http://www.revistaflorestan.ufscar.br/index.php/Florestan/article/view/64/pdf_25
Imagem da capa: Dzi Croquettes, Documentário, 2009 / Divulgação.