Por Berenice Bento
18/04/17
Há algum tempo o DSM vem sendo analisado como uma peça de controle social, discurso moralista disfarçado em pele científica. Por que psiquiatras insistem em falar e normatizar questões que dizem respeito ao direito do sujeito à autodeterminação?
“A formação da identidade de gênero tem uma base biológica”. Você já deve ter escutado esta frase. Qual base biológica? Em que lugar dos nossos corpos encontra-se a explicação para os múltiplos arranjos identitários das nossas masculinidades e feminilidades? É verdade que as pesquisas aplicadas são muitas. A lista é grande. Aí vão algumas: Já tentaram causas hormonais (Bosinski et al., 1997; Mueller, et al., 2008), neuro-anatômicas (Luders et al., 2009; Garcia-Falgueras et al., 2008), preferência pela utilização da mão esquerda entre as pessoas trans (Green & Young, 2001), herança genética (Bailey et al., 2000), peso inferior em relação aos irmãos não trans (Blanchard at al., 2002), pesquisa nos cariótipos (Inoubli et al., 2011), elevadas taxas de síndrome dos ovários policísticos entre os homens trans (Balen et al., 1993), diferenciação sexual do cérebro (Blanchard, 2001), a influência dos hormônios sexuais na diferenciação sexual do cérebro dos mamíferos na fase pré-natal (Baba et al., 2007). E, sem querer provocar nenhum surto de riso no/na leitor/leitora, há pesquisas que tentam fazer uma relação entre as dimensões das digitais e as identidades de gênero (Green, & Young, 2001; Elizabeth & Green, 1984). Para o desespero dos crentes na base biológica, ao final, todas não chegam a um resultado satisfatório.
Há muitos saberes que acreditam numa “base biológica”. Ao longo das próximas semanas, vou me ater ao DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtorno Mental), publicação da Associação Norte-Americana de Psiquiatras (APA), no seu capítulo “Disforia de Gênero”. O DSM-5 é um dos textos mais importantes na defesa de uma base biológica para as múltiplas identidades de gênero e orienta psiquiatras que têm o poder de produzir pareceres sobre as demandas das pessoas trans e travestis tanto para a realização das cirurgias de transgenitalização quanto em processo jurídicos de mudança dos documentos.
Leia o primeiro texto da série: Gênero, uma categoria médica?
O processo de revisão do DSM-IV durou vários anos foi marcado pela busca de consensos políticos. Pela primeira vez, a APA (Associação Norte-Americana de Psiquiatria) abriu o debate para o público. Embora este recurso possa parecer interessante, também nos leva a questionar a objetividade científica tão alardeada.
Antes da decisão pelo novo nome do diagnóstico para Disforia de Gênero, o Grupo de Trabalho (GT) sugeriu alterar de “transtorno de identidade de gênero” para “incongruência de gênero”. Segundo Zucker, “no site aberto da APA, recebemos muitos comentários favoráveis sobre a alteração do nome proposto, em particular no que diz respeito à remoção da etiqueta ‘transtorno’ do nome do diagnóstico. Tivemos também o apoio para esta mudança de nome em uma pesquisa internacional das organizações de consumidores que realizamos”. (in: Zucker, Kenneth J. at all. 2013. “Memo outlining evidence for change for gender identity disorder in the DSM-5”. Archives of Sexual Behavior, 42, 901-14)
A pesquisa citada por Zucker foi realizada por um grupo de pesquisadores e os resultados publicados em inglês com o título “Opinions about the DSM Gender Identity Disorder diagnosis: Results from an international survey administered to organizations concerned with the welfare of transgender people” (em tradução livre, “Opiniões sobre o Diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero do DSM: Resultados de uma pesquisa internacional administrada a organizações preocupadas com o bem-estar das pessoas trans”. In: International Journal of Transgenderism, 12, 1-14, 2010. Vance, S. R. et all).
Vejamos alguns dos resultados desta pesquisa que foi realizada entre 43 organizações que defendem os direitos da população trans em vários países, com a seguinte distribuição: Europa, 15; América do Norte, 13; América Latina, 3; África, 3; Oceania, 5; Ásia, 2; Organizações internacionais, 2.
1) De um total de 43 organizações, 69,8% afirmaram sim para a questão:
Em seu país o diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero é usado oficialmente ou com propósito legal?
A influência do DSM segue a mesma lógica de poder que os EUA têm do mundo. Embora seja um texto provinciano (no sentido de que fala de uma realidade singular), 69,8% das organizações afirmaram que é um documento que tem poder legal e científico em seus países. Em termos práticos, este dado significa que o DSM é um documento utilizado para definir os parâmetros de quem poderá ter acesso às cirurgias de transgenitalização, e/ou tomar hormônios, e/ou pedir as alterações legais nos documentos.
2) Sua organização acredita que o GID [GID é a sigla em inglês para Transtorno de Identidade de Gênero] deveria estar no DSM?
Sim = 9; Não = 24; Incerto = 10 (Total = 43, 100%)
Se a posição externa, via internet, foi tão importante para o GT mudar de “incongruência de gênero” para “disforia de gênero”, por que esta ampla maioria pela retirada também não prevaleceu? Da forma como interpreto o DSM, um texto político-ideológico marcado por uma determinada concepção cultural sobre gênero, há coisas inegociáveis. A retirada do caráter psiquiátrico das expressões de gênero que nega o dimorfismo é uma delas.
O artigo cita alguns depoimentos de pessoas que contribuíram com a pesquisa. Uma representante de uma organização brasileira trans afirma: “(a remoção do diagnóstico) vai mudar as atitudes dos profissionais médicos e da sociedade em geral e, assim, dar às pessoas transexuais a possibilidade de exigir cuidados de saúde igual a outros cidadãos.” (Vance et al., 2011:07)
Manifestante desfila na Parada do Orgulho LGBT em Nova York em 2011
3) Vejamos estas duas perguntas:
Se o GID ficar fora do DSM, o cuidado com a saúde mental seria reembolsado em seu país?
Sim = 12; Não = 14; Incerto = 16; Não respondeu = 1
Se o GID ficar fora do DSM, o cuidado com a saúde física seria reembolsado em seu país?
Sim = 12; Não = 15; Incerto = 16
Estas duas questões trazem as marcas culturais de quem as formulou. Das nove questões que compõem a pesquisa, estas duas foram as que tiveram o maior número de “não tenho certeza”, possivelmente porque quem as respondeu vive em um país onde o Estado é o agente responsável pela gestão da saúde e não o mercado dos planos de saúde.
Considerando que a maioria das organizações consultadas são estadunidenses, era de se esperar que a principal conclusão da pesquisa tivesse uma maior proximidade com as questões da população trans dos Estados Unidos. E foi esta a conclusão: “A principal razão para querer manter o diagnóstico no DSM foi reembolso de cuidados de saúde. Independentemente de saber se os grupos são a favor ou contra a remoção do diagnóstico, a pesquisa revelou um amplo consenso de que, se o diagnóstico permanece no DSM, é necessário que haja uma revisão do nome, critérios e linguagem para minimizar a estigmatização de indivíduos transgêneros.” (Vance et al., 2011:01)
As questões da pesquisa não tinham tradução para as línguas dos países incluídos na amostra. Ou seja, o critério primeiro para se participar de uma pesquisa que iria supostamente contribuir com as mudanças no Manual que, segundo 70% dos entrevistados, tem grande poder em seus países, era dominar inglês. O trabalho mínimo de aproximação cultural que seria a tradução da pesquisa não foi realizado.
Quais seriam os dados objetivos, amostrais, quantificáveis, repetíveis, para se determinar que as pessoas que demandam viver em um gênero diferente do que lhe foi atribuído ao nascimento sofrem de uma coisa nomeada de “disforia de gênero”? Não há nenhum exame para detectar a disforia de uma pessoa, tudo acontece no âmbito da economia discursiva. (Estou acionando o argumento da objetividade não porque eu compartilhe deste princípio epistemológico ou que seja partidária de uma visão científica positivista e neutra, mas para dialogar com os termos da retórica discursiva operada pelo DSM para construir a legitimidade do texto.)
O objetivo do DSM-5 é ser o “guia para diagnóstico confiáveis”, assim expresso já nas primeiras páginas do Manual: “As propostas para a revisão dos critérios diagnósticos do DSM-5 foram desenvolvidos por membros dos grupos de trabalho com base em lógica, alcance das mudanças, impacto previsto sobre o manejo clínico e a saúde pública, solidez do respaldo das evidências de pesquisa, clareza geral e utilidade clínica.” (DSM-5, 2013: 07). No entanto, a redação do capítulo “Disforia de Gênero” é toda modulada pelo auxiliar may. Este verbo na língua inglesa modela o verbo principal retirando dele qualquer possibilidade de certeza. Cito uma passagem do texto em inglês: “After gender reassignment, adjustment may vary, and suicide risk may persist”. (DSM-5, 2013: 454)
A utilização do may não acontece em partes das 10 páginas do capítulo “Disforia de Gênero”. Todo o texto sofre esta modulação. Onde aparece may é possível traduzir como “talvez”. Na tradução para o português se fez a opção por se utilizar o verbo “pode” para se manter o caráter de possibilidade, dúvida ou hipótese. A mesma passagem em português foi traduzida nos seguintes termos: “Após a redesignação de gênero, a adaptação pode variar, e o risco de suicídio pode persistir”. (DSM-5, 2013:455)
Há algum tempo o DSM vem sendo analisado como uma peça de controle social, puro discurso moralista disfarçado em pele científica. A publicação do DSM-III, em 1980, foi um marco neste debate. Aquela Força Tarefa, chefiada por Robert Spitzer, queria transformar o Manual anteriormente mais próximo do léxico e às práticas da psicanálise em um documento com rigor científico nos moldes das ciências exatas. Novos procedimentos foram adotados, medidas estatísticas inventadas, mas, na mesma proporção do desejo de verdade deste grupo de pesquisadores, vieram as críticas. E, outra vez, a pergunta inevitável: por que psiquiatras insistem em falar e normatizar questões que dizem respeito ao direito do sujeito à autodeterminação? Deixe-nos fazer gênero sem a tutela do poder científico. Deixe-nos brincar de gênero, sem o olhar binário, classificatório do que pertence ao masculino e ao feminino.